Vestida a rigor

09-04-2022

O dia amanhece com a voz furiosa de um temporal.

Eu sei que o dia pode tornar-se caótico, por isso preparo-me.

Quero garantir que tudo vai correr bem e que não vou chegar atrasada ao meu encontro.

É um encontro importante, não quero falhar.

Visto-me para a ocasião, corpo mente e alma:

No corpo as minhas botas altas pretas, umas calças de bombazine azuis, uma camisola de gola alta vermelha de lã macia e confortável, o anorak azul e na cabeça o meu chapéu impermeável vermelho.

Na mente coloco primeiro uma dose grande de paciência, vou apanhar muita gente tensa e nervosa, no trânsito, no café, no meu encontro importante.

Finalmente, na alma coloco uma dose de compaixão e duas doses de espanto.

O temporal é a voz do planeta que manifesta a sua zanga com os homens.

Tal como com os amigos tento ser compassiva, ouvir o seu sentir, aceitar que essa ira é necessária, e tento acalmá-lo ficando serena.

No final, com a minha alma de criança, abro-me ao espanto. Observo o temporal como se fosse a primeira vez: o bailar das folhas na dança do vento, o granizar que cobre o chão de um manto branco, o dramatismo das nuvens cinzentas, o som da trovoada como se fossem tambores numa orquestra, e com sorte, quem sabe, avisto um arco-íris.

Chego ao meu encontro e o meu amigo diz:

"Com este temporal, como é que consegues vir com essa cara de felicidade?"

"Olha, é simples, vesti-me a rigor!"

Hélia Jorge