Uma paixão sem urgência
Lucílio era uma pessoa apaixonada. Daquelas pessoas que quando se dedicam a algo, seja ser vivo ou inerte ou desafio intelectual, mergulham a fundo, informam-se, esforçam-se, cuidam e acarinham. Como que, para equilibrarem um esforço adaptativo a uma realidade que não conseguem alterar, tenham de exceder-se e a paixão envolve-os como uma brisa calmante.
Esta é a minha visão interpretada de Lucílio: privei com ele algumas vezes e li a sua história e dos muitos que o acompanharam com proximidade, as recordações da família e amigos. Neste contexto interpretei Lucílio, que me deixara uma forte impressão pela sua presença reta, delicadeza de trato e voz cativante, e pelos curtos diálogos vislumbrei uma pessoa inabalável. Na minha perceção de jovem, Lucílio era majestático.
Amou sua mulher num permanente encanto e descoberta. Amou a sua descendência e proporcionou a sua valorização e independência. Amou sua mãe ao ponto de prescindir dos seus sonhos para não a deixar desamparada. Lucílio gostaria de ter sido marinheiro, recriando-se como contabilista. E teve muitas paixões traduzidas em passatempos: dedicou-se ao xadrez, à fotografia incluindo a revelação, aos muitos animais que coabitaram com a família, à jardinagem, sempre de uma maneira curiosa e aprofundada, porventura numa descoberta de novos mundos e aportando a cais em enseadas acolhedoras.
A sua paixão pelo xadrez teria começado cedo, uma vez que seu pai jogava e deve tê-lo iniciado ainda criança. Acho que por ter vivido grande parte da sua infância em Macau, também terá ajudado. Certo é que ainda adolescente já tinha boa mestria no tabuleiro. E foi praticando ao longo da sua vida ao ponto de ter sido campeão da Europa por correspondência, sim, não é engano, por correspondência, algures nos anos sessenta.
Se a prática desta modalidade é uma atividade sem tempo aprisionado, em meados do século passado é quase intemporal vista de hoje. Há uma dimensão tão palpável e expectante. Conto-vos como Lucílio competia.
Pertenceu à equipa de Lisboa da Federação Portuguesa de Xadrez (FPX), filiada na Federação Internacional de Xadrez. Os jogos presenciais ocorriam sobretudo na Sociedade de Geografia (imaginem o ambiente!). Os campeonatos estariam dispersos por este país soalheiro e de costa arejada, sabendo-se que, em 1943, esteve com a sua equipa na Póvoa de Varzim, provavelmente nas eliminatórias para o Campeonato Português de Xadrez de 1944. A partir de 1951/52 passou a competir apenas por correspondência, a nível nacional e internacional.
Preferiu esta opção de jogo para não ficar longe da sua "Mestritos" (nome carinhoso que dava a sua Mulher, por a considerar a abelha mestra do lar) e da sua prole em crescimento em número e em idade.
Fiquei maravilhada com a faceta de jogar xadrez por correspondência. Uma espécie de internet caixa postal, com muita fibra mas sem ótica. Fibra de tempo.
Os jogos por correspondência realizavam-se também integrados na FPX. Atribuídos os pares e definido quem jogaria com as brancas e consequentemente iniciaria a partida, os oponentes correspondiam-se entre si através de postal de correio, por certo com cópia para a Federação.
No postal mencionava-se os jogadores e também a partida que estava em cima da mesa, melhor dizendo, a decorrer no papel. Cada partida poderia durar um ou dois anos e o campeonato seis ou mais (estão a sentir a ansiedade? Como compreendo que o carteiro fosse uma personagem tão desejada e respeitada). Por isso, Lucílio jogava várias partidas em simultâneo, umas oficiais, outras amigáveis, umas com portugueses e outras com estrangeiros, registando cada partida e cada jogada num caderno quadriculado.
Desta atividade freneticamente compassada nasciam por vezes amizades. Como a médica romena que além do vaivém xadrezista, correspondia-se ao mesmo tempo com uma das filhas.
Enquanto trabalhou, ocupou-se das entregas no correio, quando mais velho, a filha que saísse perto da hora da tiragem deixava, no marco do correio do Largo do Leão, as jogadas que percorriam quilómetros, acariciadas por muitas mãos e entregues com diligência.
Lucílio, mente aberta e atento ao mundo, que desde sempre apreciou a tecnologia (não houve novidade utilitária que não tivesse sido experimentada) também jogou xadrez no computador, ao alcance de um clique. Mas se o clique era rápido, a ponderação fazia-a como sempre a praticara, estudando os torneios dos grandes mestres: ele, o livro e o tabuleiro. Urgência? A vida é uma paixão sem urgência.
Alexandra Carvalho
Nota: fotografia de MJ Madeira