Um presente especial

12-12-2024
José Lopes Araújo - pintura digital
José Lopes Araújo - pintura digital

Um barulho vindo da cozinha desperta-me a meio da noite. É véspera de Natal e antes de nos deitarmos deixámos todos os nossos sapatos na lareira. - Um só! diz a minha mãe.

O Menino Jesus vem esta noite trazer-nos os presentes. Na lareira os nossos 5 sapatos estão a postos, o sapato preto do meu pai, a tamanca da minha mãe, e as nossas 3 botas compradas na excursão à Serra da Estrela, a da Mariana em tons de mel e pelo branco por dentro, a do Rui castanha escura e a minha em rosa e que é sempre a mais pequena.

O barulho continua persistente. Chamo a Mariana, mas ela não está ao meu lado na cama. Será que estou a sonhar? Ela bem me disse que não podemos espreitar o Menino Jesus, que temos que deixar que ele faça o trabalho e só ao amanhecer podemos ir ver os presentes. Mas a minha curiosidade é maior que o meu medo e devagarinho deslizo da cama e avanço descalça para a cozinha. 

Está escuro e o remexer da lareira continua frenético num restolhar de papéis. Desloco-me em bicos de pés para que as tábuas velhas do soalho não me traiam. Quando alcanço a porta vejo um vulto debruçado na lareira. Os meus olhos ainda não se habituaram ao escuro e tenho dificuldade em perceber os seus contornos. O meu coração bate descompassado como um cavalo a galope. Sustenho a respiração e franzo os olhos, tentando focar. Aos poucos, consigo reconhecer uma silhueta que me é familiar, muito familiar. A minha irmã Mariana está ali numa azáfama remexendo na bota do Rui e na minha. Ao princípio penso que nos está a tirar os presentes, mas depois vejo que está a embrulhar presentes e a colocá-los junto das nossas botas.

Estou em choque, a minha irmã Mariana é o meu Menino Jesus?

Volto para a cama tentando não fazer barulho. Não quero que ninguém saiba que eu descobri, não quero ainda quebrar aquela magia e fico ali numa confusão de sentimentos até que adormeço.

No dia seguinte acordo com a minha mãe a cantarolar o "Noite Feliz" ao pé da nossa cama. Está a chamar-nos para a grande cerimónia da abertura dos presentes.

Lembro-me bem da minha alegria quando vi aquele grande embrulho que nem na bota cabia. Era uma caixa de camisas, como as que o pai vendia na loja, cheiinha de roupas para a minha única boneca, talvez um dos melhores presentes que alguma vez recebi.

A Mariana olhava para mim pelo canto do olho.

- E então, gostaste do presente do Menino Jesus?

- Gostei muito, gostei tanto! Respondo duplamente agradecida.

Soube mais tarde que tinha sido a minha irmã a costurar aquele guarda-roupa de luxo com sobras de tecidos da loja.

Demorei ainda uns anos a revelar o segredo. A magia do Menino Jesus não tinha desaparecido, transformou-se na admiração que sempre senti pela minha irmã Mariana que, sabendo que os meus pais não tinham nem tempo nem dinheiro para nos comprarem presentes, sempre se desdobrou em imaginação para que os nossos sapatos nunca ficassem vazios.

Para a minha irmã Isa companheira de muitas vidas.

Este conto foi escrito em dezembro de 2018, faz parte do livro " A festa de Catarina".

Hélia Jorge, dezembro 2024