Reviver o passado em... Transição

09-02-2022

O ciclo da vida pode ser uma coisa engraçada, pelo que o envelhecimento não tem, nem deve ser só, uma fase difícil e por vezes deprimente da nossa existência. Sou de uma geração em que quando criança uma pessoa com cinquenta anos era já um velho. Daí para a frente com o cabelo grisalho e sem largar o fato e gravata, os homens envelheciam ainda mais rápido e as mulheres com a preocupação de zelar pela casa, algumas a trabalhar tal como os maridos e a olhar pelos filhos e depois pelos netos, envelheciam mesmo ainda mais cedo. Ou pelo menos assim me parecia.

Depois os mais velhos, entre os quais se encontrava o meu Pai, enchiam os ouvidos dos mais novos com o discurso cansado de "no meu tempo ou no nosso tempo..." para nossa permanente irritação. Outra coisa que se tornava por vezes cansativa, era a propósito de tudo e de nada, terem sempre uma história para contar, história sobre a qual os outros adultos, que os rodeavam, riam sempre muito, para surpresa nossa, os mais novos, que não conseguíamos perceber onde estava a graça.

Ora dou por mim e a padecer do mesmo que ouvira ao meu Pai e amigos. A recordar o tempo passado ou a contar sempre a propósito de tudo e de nada uma história que vivi. Valha-nos ainda a lucidez e o espírito autocrítico de dar por isso. Fico assim sempre com receio de estar a incomodar o meu interlocutor com tais histórias. Claro que tal resulta tão simplesmente da circunstância, de em geral uma pessoa com sessenta anos já ter vivido muito. A mim, que fui jornalista e andei por muito lado, tem-me mesmo ocorrido ouvir de outros mais jovens, contarem histórias numa versão diferente, quiçá até melhor (si non e vero e bene trovato...) que se passaram... comigo. As histórias foram assim alteradas e mesmo melhoradas num processo curioso de tradição oral que dão uma grande volta e acabam por tocar o protagonista desta vez ignorado ou já com outro nome.

Esse regresso permanente ao passado tem, porém, coisas boas. Das experiências mais recentes que vivi, está o prazer de revisitar locais que antes conhecera ou sítios escondidos na recordação da infância. Gosto assim, quando volto de quando em vez à ilha que me viu nascer ou onde cresci, procurar esses locais por mais simples que sejam, mas que parecem imutáveis no tempo. Às vezes é uma pedra num canto de uma rua, uma árvore onde subia em criança, a igreja da aldeia onde passava as férias junto à casa dos meus avós e que bem sabe esse reencontro. Esta semana, comprei em alfarrabistas dois livros muito antigos que tiveram um particular significado para mim quando jovem e que ao emprestá-los, perdera-lhes o rasto. Foi um reencontro agradável. Pareceram-me muito mais pequenos do que os que tivera em minha mão há mais de cinquenta anos, mas porém eram a mesma edição. Eu é que claro cresci e os livros em geral hoje são mais volumosos e com encadernações mais cuidadas.

Regressar ao passado é prazeroso porque é voltar a viver, agora com uma visão diferente, eventualmente mais crítica mas também mais saborosa, o tempo vivido. Faz parte desse exercício rever álbuns fotográficos de família, esses antepassados mais gostosos e melhor apresentáveis do que Facebook e quejandos....

Finalmente a nossa mente, esse prodígio tecnológico que é o nosso cérebro e que no sonho noturno ou na imaginação diurna, nos atira rapidamente para vivências longínquas onde vivos e mortos se misturam indiferentemente num tempo único, numa ação presente e participada.

Que privilégio esse de termos vivido tanto...por vezes tornando vivências longínquas tão perto, como se fosse ontem. E quanto mais vivemos, mais o passado se aproxima do presente.

O meu saudoso amigo e padrinho de casamento Fernando Pessa, teve uma vida longa, tendo falecido exatamente com a bonita idade de cem anos. A partir dos oitenta falava dos tempos mais longínquos como se fossem o presente. Contava-me histórias de quando em jovem distribuíra correio a cavalo na região de Coimbra e se fazia anunciar pelo toque de clarim (tal como vemos no símbolo de sempre dos CTT) com o mesmo entusiasmo do presente e como me perguntava se me lembrava da Revolta da Mealhada e do Mendes Cabeçadas, para ele revolta tão próxima quanto o 25 de Abril, só que aquela fora em 1946, onze anos antes de eu ter nascido. Ou quando me contava como conhecera em Copacabana a garota de Ipanema. Meu Deus parecia que não havia tempo! Quanto mais longa a vida e mais nela se avança e mais se perde a noção do tempo já vivido.

Ou seja, ao envelhecermos, temos esse permanente regresso ao passado com as evocações que a memória teimosa repetidamente nos traz. E isso pode rejuvenescer-nos, se soubermos reviver com prazer o tempo vivido, levando-nos de novo a jovens e a até a crianças, numa alegria que desafia as leis do tempo e do espaço e nos situa na real dimensão da eternidade.


Lopes de Araújo


Fotografia de Jorge Gonçalves Silva