O que é estar em transição

19-11-2021


Francamente não gosto da ideia de envelhecer. Creio que ninguém gosta.

Não é só ver o nosso corpo perder faculdades ou vitalidade e força, é mesmo triste a ideia de estarmos na fase final da vida. Na verdade desde que nascemos, como dizia d'Ormesson, assinámos um contrato com a morte, mas achamos que apesar de ser um evento certo, esse evento, a morte, afigura-se-nos na juventude, longínquo e remoto. Cremos mesmo que não será para nós tão cedo pelo que não é problema que se nos ponha. Quando jovens e em todo o fulgor da vida, parecemos mesmo imortais. Ora a chegada desta última fase da vida, lembra-nos a nossa finitude, recorda-nos que o tal facto certo que nos parecia remoto parece aproximar-se, com sorte nas próximas duas no máximo três décadas.

A juntar a esta trapalhada deprimente, já que é muito bom viver e não há qualquer certeza, a não ser por fé, da existência de outra vida para além da que conhecemos, junta-se talvez a premissa mais importante dessa problemática equação. Achamos, que ao nos reformarmos já não servimos para nada. A sociedade contemporânea olha para tudo o que é velho, sejam coisas ou pessoas como material descartável, desinteressante e sem qualquer utilidade. É a geração do novo a imperar.

Em particular a sociedade onde tivemos a sorte ou o azar de nascermos (a dos chamados países do hemisfério norte, capitalista, desenvolvido) cria-nos, desde a escola primária, na ideia de que nascemos para trabalhar. Os nossos estudos são assim todos encaminhados para a procura de um trabalho futuro e para nesse trabalho sermos bem-sucedidos, o que equivale a fama, sucesso e dinheiro para comprar mais coisas e mais amizades ou influências. Transmitimos isso também aos nossos filhos. E assim passamos toda a vida vivendo para trabalhar. Descansamos um pouco no fim de semana, para logo na segunda-feira voltar a ter forças para voltar a trabalhar. Também as férias passam a correr para recuperar energias para depois voltar ao trabalho. E os anos vão rolando sempre no trabalho. Eu que trabalho há quarenta e seis anos, para mim a mudança de ano nunca foi a 31 de Dezembro. Foi sempre no primeiro dia de regresso ao trabalho depois das férias de Verão. Mais um ano...

Os Japoneses apontados como sociedade desenvolvida e de sucesso, vivem literalmente para trabalhar. Contou-me um amigo que trabalhou no Japão, na Sony, que um engenheiro local lhe mostrara com orgulho uma foto emoldurada que tinha em casa como sendo do dia mais importante da sua vida. Fora quando o Diretor-Geral o convidara e à mulher, e a mais alguns quadros da empresa, para jantarem na sua casa. Contou-me também que a empresa tinha naquele tempo como política pagar as férias aos quadros superiores, e mandá-los para destinos longínquos, porque se o não fazia eles iam para a empresa ao fim de uma semana de férias. Não aguentavam mais de uma semana sem trabalhar.

Não a esta escala, mas todos nós conhecemos na nossa vida casos parecidos quando não terá sido por vezes o nosso próprio caso. Ficámos adictos ao trabalho.

Ora no hemisfério de baixo (entenda-se o Sul, pobre, pouco desenvolvido e em alguns casos ainda tribal) a vida não é feita para trabalhar mas para ser vivida. Vive-se para viver mesmo que com muito pouco, cada momento de felicidade, no contacto com os outros, no contacto com a natureza ou com os animais.

Vai daí, nós, os do Norte que vivemos para trabalhar, quando deixamos de súbito de o fazer, como bem recordava Agostinho da Silva, que gostava muito de desenvolver esta tese, ficamos sem saber o que fazer. Fazer o quê?

Pois bem viver. Viver o que não vivemos e deixámos perder ao longo de uma vida de trabalho.

Não gosto da palavra aposentação. Prefiro mesmo o termo reforma. Reforma como a de Lutero...romper com o que estava mal, com o que esteve mal. Prefiro, pois, reformar-me no papel e também por dentro.

A transição é pois para mim, que a preparo há já algum tempo, mais do que o passar à reforma, e ir fazer cruzeiros com chapéu de palha entornando margueritas seguidas no happy hour, é sim uma mudança de atitude e de pensamento. Chegou a hora de viver para viver.

E viver vale tudo, desde coisas simples a projetos que adiei. Há um mês atrás comecei aulas de guitarra clássica portuguesa. Às vezes quase que desespero e só não desisto, porque penso sempre que, como dizia Camões..., "feio é desistir da coisa começada". E que gozo me dá dedilhar as cordas, mesmo que ainda não toque nada que se possa ouvir a sério, apesar do entusiasmo e incentivo que me transmite o meu jovem professor. Pode levar tempo, mas lá chegarei. Como ainda queria fazer outras coisas maiores. Perceber melhor algumas culturas orientais, atrever-me na selva amazónica. Passear no futuro com o meu primeiro neto nascido há duas semanas, conviver com os amigos que não eram meus amigos apenas pelo trabalho, falar com gente das ruas com quem nunca falei a vida inteira, porque ia atarefado para o trabalho ou porque a minha condição ou estatuto profissional não o recomendava.

A transição não é o tempo de envelhecer, é o tempo como dizia Agostinho da Silva no seu imenso saber, de ..."deixar de viver para trabalhar para passar a viver... para viver".


Lisboa, Outubro de 2021


Lopes de Araújo