Natal Tropical
Conto de Natal
Francisco Machado saiu de Lamas, freguesia de Braga, a caminho do Brasil, num camarote de terceira classe do Infante Dom Henrique, que largou ferro do Porto de Leixões rumo ao Rio de Janeiro em 6 de Março de 1964. Na bagagem, a mulher e um filho de sete anos. Como tantos outros, aterrou na Praça Mauá à procura de melhor sorte, naquela terra que logo a todos surpreende à chegada pelos morros verdes arrancados do mar a pique, de formas estranhas, no ar cheiros a frutos, calor e humidade saindo do céu e da terra que nem Botafogo...
Ajudado pelos patrícios de Braga, lá arranjou trabalho como caixeiro numa loja de secos e molhados perto da Igreja da Candelária. Tempos difíceis. Três patrões em pouco tempo, é porque não estava calhado para aquilo. Nem os clientes pareciam perceber o Português dele. Acabou a trabalhar em serralharia numa fábrica de alumínios, a "Companhia Edificadora", trabalho em caixilharia para obras. Trabalhador zeloso e dedicado, não tinha que falar muito, fazia o seu trabalho bem, respeitado por todos. Só o viam parar meia hora para tirar o almoço da lancheira e fumar um cigarro, não dois ou talvez três se desse tempo. Bom dia, Seu Mário!... curvava-se respeitoso quando entrava o gerente, Brasileiro do Sul, alto, cabelo louro, olho azul, de seu último nome Zimmerman, não enganava as origens. Nascera em Blumenau, o pai, dono da fábrica, investiu no Rio mas vivia em São Paulo. Seu Mário, como queria que o chamassem não era para conversas. Disciplinado e trabalhador, era o primeiro a entrar e o último a sair. Dirigia a contabilidade mas conhecia toda a fábrica e toda a gente desde o armazém à linha de fabrico.Um dia disse a Francisco:"-Você é um cara legal, trabalha e não fala".E era mesmo assim.
Seu filho João, mal chegaram, foi para a escola do bairro. A garotada zombando dele pelo sotaque. Piada de Manuel, ouvira ele mil, e de nada serviu ser o mais inteligente da sala.O Professor Vilela gostava dele, dizia "-João não liga pra eles, você vai ser alguém, você estuda e tem brio".
À noite no quarto do fundo, já tarde da noite, com o pequeno transístor no ouvido, João repetia a voz dos locutores da Rede Tupi tentando imitar o sotaque carioca. Até pedira, na oração da noite, que "aprendesse a falar Brasileiro rápido pra poder integrar a turma do bairro". Tanto foi assim que ainda hoje não consegue falar Português direito...
Um dia nas férias de Verão, seu Pai disse:- "João você já não é moço (fizera treze anos), não pode ficar aí andando na rua dois meses sem fazer nada." Na manhã seguinte, Francisco encheu-se de coragem e bateu à porta do escritório, para pedir a Seu Mário se arranjava um trabalhinho para João nos dois meses de verão. "Não interessa o que vai receber ou se vai receber, só não quero o garoto na rua, cidade perigosa essa...,seu Mário". Que sim, que ele viesse, até dava jeito um office boy para levar o correio e ir fazer recados.
Logo no dia seguinte João foi trabalhar. Seu primeiro trabalho foi levar um envelope ao escritório da Seguradora, na Presidente Vargas, a dez minutos a pé da fábrica.
Estava um dia lindo de Sol, o Rio todo brilhava de Botafogo ao Corcovado. Ficou vendo garotas de chinelo a caminho da praia, parou para ver revista de quadrinhos de Superman, comeu sorvete na lanchonete da Dona Zoraida ao pé de casa, e só voltou à fábrica quase duas horas depois quando já tinham ligado várias vezes da Seguradora...
Seu Mário Zimmerman alto, e mais louro do que nunca, entrou na sala da produção onde quarenta operários alinhavam os alumínios para entrarem no corte e com João pelo braço gritou mais alto do que o barulho das máquinas:
-Francisco, esse seu rapaz é burro! Não o quero cá mais.
João olhou para seu Pai que murmurou umas palavras das poucas que alguma vez terão ouvido os colegas, cabeça baixa, a vergonha a cobrir a sua condição humilde de operário emigrante. Tudo por culpa dele.
Passaram alguns anos. Seu Pai morreu novo com enfisema pulmonar, sua mãe o criou e educou, três trabalhos num dia para que pudesse fazer seu cursinho de engenharia mecânica, sempre com nota máxima, rapaz inteligente esse seu João diziam vizinhas e amigos.
Mas João ainda pensou em trabalhar na engenharia civil quando acabou os estudos. Fez uma ou outra obra numa empresa que trabalhava em Jacarepaguá, zona em crescimento.
Mas atento aos negócios aprendera com o Brasileiro mais do que o sotaque, esse jeito de pega que faz mas não faz, essa conversa mole que vende,meu irmão,um chopinho ou dois...não há negócio que não se faça com uma boa conversa, uma ida a um bom bar ou a um restaurante, e João conhecia-os a todos no Rio. Dos melhores aos mais suspeitos, tinha amigos em todo o lado. Fazia o maior sucesso com as mulheres,desde as filhas de industriais vivendo nas coberturas da Avenida Atlântica, a garotas de programa ou às frequentadoras de bar dos hotéis de luxo Windsor, o Sheraton ou o Copacabana Palace.
Estava na moda o vídeo-clube e o home vídeo despertava então. João comprou direitos, negociou exclusivos, ia quase todos os meses a Miami ou a Los Angeles. Ficou com o exclusivo dos desenhos animados da Hanna Barbera para o Brasil, negociou com a Disney e outras majors. Comprou cinemas em cinco cidades do Brasil. Vinte casas de aluguer de filmes só no Rio. Frequentou os melhores hotéis e casinos do Conrad, do Uruguai a Buenos Aires e Vegas. Ganhava muito, mas gastava também muito.
O negócio cresceu demais e rápido. Tinha já muito pessoal,uma dIretoria de Recursos Humanos, um Financeiro, mas faltava-lhe alguém que segurasse a contabilidade. Escritório num sétimo andar da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, pertinho da praça Edmundo Bitencourt, em Santa Clara, onde vivia mamãe numa casa antiga que comprara para ela.
Precisava de um Contabilista a sério:"-Rosalyn", dissera à secretária quinze dias antes-"bota anúncio na seção de emprego do Globo" .Uma semana depois, doze candidatos que, rápido, ficaram reduzidos a três.
Dia 24 de Dezembro, meio dia. As entrevistas arrastaram-se. O Diretor de Recursos Humanos manda entrar o último candidato. João abriu o file e levantou os olhos. Reconheceu-o pelo nome, não pela figura. Cabelo agora já todo branco ,ligeiramente curvado ,terno puído mas limpo, os mesmos óculos e acima de tudo os mesmos olhos azuis.
Era de longe o candidato mais qualificado, muita experiência, sabia bem do que falava, fiscalidade, facturação, importação de bens e produtos e sua taxação.
-Mas porquê nessa idade querer trabalhar?
-E ele que precisava, que tinha sido dono de uma fábrica que falira, os materiais importados mais baratos, pré-montados...
João não o ouvia...só via gritar mais alto do que as máquinas: "seu filho é burro"...e a vergonha do Pai... o enfisema, a morte tão cedo.
-O que acha?...
João não respondeu olhou-o de novo bem nos olhos, mas ele não o reconhecera.
Fez-se silêncio. Só se ouvia o barulho do ar condicionado na janela. João levantou-se e disse:
-Bom vai ter que esperar um pouco mais. A seguir ao almoço logo lhe dizemos.
Saiu rápido pelo elevador, não respondeu ao ascensorista nem ao porteiro que o saudaram: Feliz Natal Seu João!
Atravessou a rua, o ar empestado do cheiro a álcool da chusma de fuscas empurrando-se avenida abaixo, turistas rosados do sol, grupos de garotas exibindo ancas e pernas bronzeadas arrastando chinelos no calor infernal do meio dia, a caminho da praia ali logo na esquina. Entrou na lanchonete, pediu uma sanduíche e um suco de goiaba (deixara de beber há muito).
Raios! Maldito Zimmerman. Era o homem de quem precisava no momento...mas não podia.Não podia fazer isso a si nem à memória do Pai!
Voltou devagar ao escritório.Tinha a decisão tomada.
Ele lá estava sentado, ainda na mesma cadeira lendo a página de negócios do Jornal do Brasil. Rosalyn não voltara do almoço. Mandou-o entrar e sentar-se.
Fez-lhe um elogio longo, as palavras saíam-lhe sem sequer pensar nelas, terminou dizendo você é o melhor candidato mas, lamento, não pode ficar com o lugar.
E sabe porque não pode?
Seu Mário não percebera ainda. Não pode Seu Mário porque se ficasse trabalhando comigo, todos os dias eu veria em si meu Pai, Francisco Machado que trabalhou para o Sor tem vinte anos, lembra? Eu sou aquele moleque que você chamou de burro, envergonhando meu Pai, sabe? Então eu nunca o poderia ter aqui.
Os olhos azuis abriram-se muito por segundos, mas depressa retomou a postura inicial:
- Seu João é...Joãozinho?Ah compreendo, tem razão. Minhas desculpas...minhas desculpas.
Levantou-se, saiu sem pressa.
João ficou parado olhando a parede. Depois Levantou-se pegou o casaco e um saco de compras e saiu. Carregou no botão do ascensor pra garagem, ainda tinha que ir buscar mamãe e depois furar o trânsito da véspera de Natal até São Conrado na zona sul para a noite de Natal em família.
Carregou de repente na entrada. Saiu do elevador a correr, o porteiro abriu a porta do prédio e não chegou a sair para a rua. Deu com as costas curvadas de seu Mário a começar a descer a Avenida, a misturar-se com a multidão. Deu um grito:
- Seu Mário!
Ele virou-se de imediato.
-Seu Mário, mudei de ideias, o lugar é seu. Falamos a 26!
Os olhos azuis pela primeira vez esboçaram um sorriso.
- Obrigado. Feliz Natal, seu João!
(Esta história é real e apenas os nomes das personagens e as circunstâncias foram parcialmente alterados)
José Lopes de Araújo (1)
(1) Este texto foi escrito em português padrão brasileiro e publicado em jornal no Brasil