Lotaria de Natal
Porque é que uns têm sorte na vida e outros não? Claro que para ter sucesso é preciso esforço e trabalho… mas é necessário sempre um pouco de sorte. Foi o caso do Ruca.
Rui Manuel Sousa, para os amigos o Ruca, fizera os cinco anos da Escola Industrial e arranjara trabalho como administrativo nos Serviços Municipalizados de eletricidade. Ganhava-se pouco, mas não era um mau emprego nos anos sessenta e numa cidade de província que era aquela dos Açores onde nascera e se criara. Tinha sorte. Não tinha mulher nem filhos, vivia com a mãe, pelo que contava com casa, comida e roupa lavada. O dinheiro ia para um ou outro fato que tal como a gravata, eram então traje obrigatório na repartição. Dava algum à mãe e ficava com o resto para no sábado depois do cinema no Coliseu, ir logo ali em frente beber umas canecas de cerveja na Melo Abreu e para entornar mais algumas no domingo à tarde acompanhadas de amendoins, a ver a bola no estádio Margarida de Chaves ao lado do Relvão.
Dir-se-ia que o Ruca era um homem de sorte. O pé chato e uma asma crónica não muito grave, livraram-no por uma unha negra do serviço militar e de ir bater com os costados no Ultramar. De novo a sorte a olhar por ele, já que naqueles anos poucos se safavam de fazer a tropa e de ir parar à guerra de África.
Na repartição cedo lhe começou o gosto por jogar. Jogava no bicho, jogo clandestino, mas de tão popular que era já quase "legalizado". Todas as semanas ia deixar uns escudos no bicheiro mais próximo, o barbeiro Mestre José no canto em baixo da Rua. Tinha palpites… como dizia e não raro era o dia que logo pela manhã, ora tinha uma fé na avestruz onde rápido apostava ou porque sonhara com um macaco, punha a repartição inteira a apostar no dito…e a ganhar. Todos lhe perguntavam na quinta-feira qual era o palpite dele, para logo o seguirem nas apostas, com uma fé e fidelidade quase religiosas. A verdade é que acertava na maior parte das vezes. Houve mesmo um Natal em que lhe venderam umas simples rifas e foi para casa ao fim do dia com cinco litros de azeite e dois patos, prémio do dito sorteio. O Ruca trazia consigo a sorte…Não comprava a lotaria porque era muito cara.
Mas um dia arriscou comprar uma cautela na Lotaria de Natal. Era a última que o cauteleiro tinha na mão. Hesitou …andou ali às voltas a interrogar-se sobre se deveria ou não jogar, mas finalmente decidiu-se a comprar. Era um número baixo o 12 433, lembrava-se bem. No dia seguinte não queria crer quando de ouvido colado à rádio, ouviu cantar na extração da Santa Casa da Misericórdia: …doze mil quatrocentos e trinta e quatro…primeiro prémio, quatro mil contos. Falhara o primeiro prémio apenas por um ….
Apostava tudo …cinco escudos no resultado de um jogo de futebol…2 escudos em como o Chefe não vinha hoje, tudo servia de pretexto para desafiar os colegas para uma aposta a dinheiro. A única coisa que não jogava a dinheiro era às cartas. Nem poker nem qualquer outro jogo. E isso tinha uma explicação. Por um lado, acreditava na sorte pela sorte, na aposta aleatória e não numa habilidade ou conhecimento do jogo, era esse risco do incerto, do acaso escondido no futuro, aquilo que o seduzia. A outra razão era o pai que partira há anos e o deixara a ele miúdo e à mãe sem qualquer amparo. O pai passava noites a jogar cartas a dinheiro, bebia tanto quanto jogava, perdera o que tinha e o que não tinha…e só não apostara a casa, porque essa não lhe pertencia, era da avó materna e assim continuou. Do Pai nunca mais soubera nada.
Apesar de uma vida tranquila, o Ruca como quase todos os Açorianos sonhava com a América. Tinha lá um tio que emigrara era ele miúdo. O Tio vivia em Bridgeport Connecticut e depois de muitos anos de ausência, viera à ilha. Contara a vida que tinha, montara a sua própria empresa de limpeza de escritórios e tinha mais de cinquenta pessoas a seu cargo. Propôs ao sobrinho ir trabalhar diretamente com ele. O Ruca hesitou…não queria deixar a mãe, mas pensou logo na possibilidade de fazer carta de chamada logo estivesse instalado. E lá partiu do campo de Santana, deixando para trás os amigos e a repartição, a caminho de Nova Iorque com paragem em Santa Maria, para apanhar o grande avião da Pan American que o levaria até ao Aeroporto de Kennedy, onde o tio o aguardava.
Trabalhou duro nos primeiros anos, trouxe a mãe para a América e casou com uma bonita rapariga Portuguesa que conhecera numa festa no Salão Português de Hartford logo ali perto de onde vivia em Bridgeport.
O jogo e a sorte pareciam ter ficado para trás e pertenciam ao passado.
Até que um dia, um amigo levou-o pela primeira vez às corridas de cães, ao dog track. Foi no "Shoreline Star" num parque da cidade. Apostou no J.C Wesley, um galgo afegão que corria que nem uma seta e naquela noite fez quase cinco mil dólares. Passou dos cães para as corridas de cavalos em Nova Iorque aonde ia de quando em vez e seguiram-se algumas noites num Casino, "O Cristal" numa reserva índia onde ganhou mais do que perdeu. A sorte voltara...
Os negócios corriam bem, tinha já a sua empresa de "Real Estate", ou seja, uma imobiliária, e era dos maiores vendedores da área. Para fazer férias, a mulher estudava cuidadosamente o destino, escolhendo locais onde não houvesse jogo por perto, para poupar nas discussões com o Ruca. Nos cruzeiros que frequentemente faziam, era difícil mantê-lo no camarote. Esquivava-se a meio da noite, para ir ao casino por umas moedas nas máquinas ou jogar na roleta e no black Jack. Mesmo num cruzeiro em que não havia casino, a mulher foi um dia encontrá-lo no convés superior, com dois turistas canadianos, todos já bem bebidos, a apostarem em corridas de tartarugas, animais que tinham retirado para o efeito de um aquário existente na receção do navio.
Tinha uma fatal atração pelo jogo, tinha sorte e em geral saía ganhador.
Era dezembro poucos dias antes do Natal.
Deitara-se já tarde, depois da festa de Natal da empresa num hotel da baixa da cidade. Bebera vários dry-martinis, vinho da Califórnia, depois Vinho Português trazido propositadamente para a festa. O sono foi agitado, acordou várias vezes no silêncio da casa, apenas com o zumbido do aquecimento ligado. Passara então a vida em revista, a infância difícil, o pai que nunca mais vira, o emprego na repartição, os jogos no Margarida de Chaves e as cervejas da Melo Abreu, a partida para América já há mais de vinte anos, o casamento e os filhos, o sucesso e uma vida boa, o prazer de jogar, arriscar e ganhar.
Voltou a adormecer. Agora sonhava com particular nitidez. Estava em Nova Iorque (onde ia com frequência porque ficava ali próximo) num café com um grande televisor ligado. Anunciavam os resultados do Megabucks (Lotaria Americana) ou seria o Powerball a milionária lotaria, a maior de todas a nível Federal? Não conseguia distinguir. Mas o locutor anunciava os números premiados: 6, 15, 34, 42 e 60 e o número suplementar o 7. Alguém lhe perguntou: Tomaste nota? E ele aflito no sonho, à procura de uma caneta e a escrever num bocado da toalha de papel do bar. Acordou em pânico porque não jogara.
Apenas se ouvia o zumbido do aquecimento. Voltou-se na cama várias vezes. A mulher dormia tranquilamente. Levantou-se e foi para a sala em baixo. Pela janela viu a neve a cair ininterruptamente por detrás das luzes de decoração Natalícia. Pensou vamos ter um "White Christmas" …
Foi fazer café. Doía-lhe a cabeça, não sabia se do sonho tão real se dos dry-martinis da véspera. Saiu para o escritório ainda era noite.
Tinha escrituras para fazer com clientes, seguros para tratar (era agora também broker insurance) casas para mostrar. Esse trabalho era para os mais de trinta vendedores que trabalhavam com ele, mas fazia questão de acompanhar alguns clientes especiais.
Às quatro da tarde deixou o escritório, atravessou a rua e entrou no supermercado para comprar o que a mulher lhe pedira para o jantar. À entrada, estava o posto de venda do Megabucks e o anúncio de Christmas jackpot para hoje no Powerball… 30 milhões de dólares.
Nem hesitou. Tentou lembrar-se dos números do sonho, mas não se recordava de início. Pegou numa caneta e num bocado de papel e uns segundos depois… os números apareceram-lhe claros e nítidos como no sonho. Escolheu os números, o suplementar a bola vermelha o 7, pagou os dois dólares, guardou o comprovativo e saiu.
Depois do jantar ficou na sala a ver televisão.
Era perto das onze da noite. A casa voltara ao silêncio e ao zumbido do aquecimento. O volume do televisor estava baixo para não acordar a mulher. Deu umas cabeçadas de sono e dormitou. Voltou a acordar para com o comando saltar os canais até ao canal da Lotaria… anunciavam agora os resultados do Powerball:
6, 15, 34, 42 e 60 e o número suplementar o 7.
Não sabia se estava ou não de novo a sonhar…
Ganhara a lotaria de Natal!
Como todos os Contos de Natal aqui publicados também este é inspirado em factos reais.
José Lopes Araújo
Lisboa, Dezembro de 2023