Humana de estimação
Chego a casa, tarde...stressada...o contrato ainda a reboque dos meus pensamentos...e quase tropeço nele...
Ele, ali, à espera dela, ansiando pela próxima atenção, pela próxima festinha, horas vazias a desdobrarem-se lentamente, com preguiça, até a luz nas janelas desvanecer revelando que já não deve faltar muito. A bocejar dirige-se para a porta e espera...
Solto um palavrão, quase caí...este gato coloca-se sempre estrategicamente debaixo dos meus pés...e logo no fim do dia...não tem mais nada que fazer? Parece que faz de propósito, o pestinha, à espera que eu vá ao chão...rasgo um sorriso com a imagem que se forma e acabo por lhe fazer uma festinha distraída na cabeça peluda em jeito de "olá", enquanto me dirijo para a cozinha.
Ele regozija...a festinha, o carinho pelo qual aguarda o dia inteiro... ronrona alto de prazer... Agora é que o dia começa...já conhece a rotina. Pode-se dizer que a domina até. Antecipa todos os seus passos, e vai andando, à frente dos pés dela, mas olhando para trás a cada passo, num ziguezague sedutor, assegurando-se que ela o segue, alta, magnífica, divina.
Abro o armário em bicos de pés, saí à minha mãe, sou baixinha...retiro o saco de ração seca de atum. "Convinha que de vez em quando cozesse um peixinho ou peitinho de frango para lhe dar uma alimentação caseira e livre de conservantes" as palavras do veterinário ecoam em mim, cheias de arrependimento e sentimento de culpa...era bom era...nem para mim...e encho de água e ração a tacinha do bebedouro/comedouro azul, aquela com uma pata e um coração impressos, comprada ali, no chinês da rotunda, por tuta e meia.
Ele atira-se à água, e apenas petisca a comida. Já sem a voracidade de outros tempos é certo, mas este é um dos momentos preferidos do seu dia. Teria preferido caçar o seu próprio alimento, claro, mas depois de vários anos na companhia dela - quantos? Não sabe...muitos! - contenta-se bem. E ronrona, mesmo enquanto come, ronrona.
Tiro uma qualquer refeição rápida já de há dois dias que encontro no frigorífico...cheiro-a...se não a comer hoje, estraga-se. Vou para a sala e acendo a televisão num qualquer canal de notícias. Não que preste muita atenção ao que está a dar, mas porque o som corta o silêncio ensurdecedor da casa vazia. Sento-me à mesa com a comida à frente e abro o computador ao lado para trabalhar no malvado contrato.
Ele lambe os bigodes e vem esfregar-se nas pernas dela e principalmente nos seus sapatos. Finalmente a casa parece-lhe cheia. A essência dela impregna todos os seus sentidos. Uma mistura de cheiro corporal com toda uma paleta de outros odores, a rua, terra, erva, animais...Sente-se inebriado e sonha com o dia em que ela o levaria também e juntos partiriam à aventura. Salta para uma cadeira e logo de seguida para cima da mesa onde começa a lamber as patas para fazer a sua higiene. Quer estar perto dela, acompanhá-la no que quer que seja que ela estiver a fazer, partilhar com ela o seu espaço.
Dou um grito. "Não! Riscas, não! Sai de cima da mesa... já!" Gato mal educado. 17 anos e ainda não aprendeu. Arre... arranja um animal para não te sentires tão sozinha... sim, sim, e o trabalho que dá, e a prisão que é...? Devia estar a tratar do contrato no escritório, mas o desgraçado ainda me morria à fome... antes ainda tinha a mãe para cuidar dele sempre que eu não podia... "Pára já com isso em cima da mesa de jantar, tu ainda levas! Não!"
Ele já entende perfeitamente essa palavra - "Não!" - ouviu-a vezes sem conta ao longo de toda a sua vida... "Não"! Por um lado, sabe que quer dizer que não deve fazer algo, por outro sabe que chamou a atenção dela. Por isso salta para o chão - as articulações queixam-se do baque duro - e fica acocorado, dividido entre continuar a lamber-se no chão, ou saltar mais uma vez para cima da mesa para se tornar novamente no foco da sua companheira. Olha para ela, de baixo para cima, ronronando, enquanto tenta decifrar aquela expressão no seu rosto e decidir o que fazer.
Levanto-me e atiro a loiça suja para a máquina. De forma maquinal, meto a pastilha no depósito e ponho-a a trabalhar. Hoje foi um daqueles dias em que nada correu bem e acabo por fechar a tampa do computador e empurrar o contrato para amanhã. Limpo os cocós da caixa de areia dele. Pois, mais essa, logo eu, que me enojo toda com cheiros e porcarias... abençoado seja o inventor da areia aglomerante... Deito-me ao comprido no sofá e, de controlo na mão, vou desfiando as imagens que projetam flashes de luz por toda a divisão.
Ele salta de contentamento com os reflexos de luz na parede. É uma das suas brincadeiras preferidas. Finge tratar-se de presas ameaçadoras que ele tenta agarrar, mas que lhe fogem constantemente das patas, apenas para se voltarem a materializar momentos depois. Mas agora, a cada salto, sente que algo está diferente...sente-se cansado...como se as suas forças o traíssem...e acaba por cair no chão...confuso...amedrontado...envergonhado.
Salto do sofá e olho para ele...o que se passa? Será que se aleijou? Bateu contra alguma coisa? Pego-lhe com jeitinho e aninho-o no meu colo. "Então Riscas...o que aconteceu?" sussurro, quase como que com medo de dizer alto o que me vai na alma.
Ele tenta ronronar mas não consegue...a respiração torna-se difícil, como se o ar estivesse a ficar cada vez mais espesso e o aconchego dela o sufocasse. Está com medo, mostra os dentes...não para assustar, mas porque toda a sua natureza se revolta perante esta fraqueza...toda uma existência de orgulho felino agora ferida...
Vou buscar a manta dele e a transportadora. Com todo o cuidado, derramo aquela bola de pelo embrulhada lá para dentro. Vendo bem, o Riscas não tem andado nada com bom ar...digito o número das urgências veterinárias e aviso que vamos chegar em 15 minutos. Ai Deus, espero que não tenha nada de grave...entro no carro com ele e arranco...se calhar já devia ter visto algum sinal antes, mas tenho andado tão atarefada...ai Riscas, desculpa...aguenta, ok?
Ele ouve a voz dela ao fundo...todos aqueles sons que aprendeu a abraçar como seus...mas que agora se esfumam, toldados pelo som do seu próprio coração que devagar, lentamente, deixa de bater, enquanto os seus olhos lançam um último olhar para cima, para ela...para a sua humana de estimação.
Cristina Semião