Então, e que tal de notas?
"E era bom aluno? Tinha boas notas?", pergunta invariavelmente Francisco Pinto Balsemão aos seus convidados no podcast "Deixar o mundo melhor".
Confesso que a pergunta me choca, choca me mesmo sabendo que é fruto de uma determinada época.
Choca-me, não porque eu tenho sido uma má aluna mas exatamente porque fui uma excelente aluna. Fui sempre uma aluna de "quadro de honra", até o termo me arrepia.
Choca-me pela pergunta em si e choca-me ainda mais pelo contexto em que é formulada.
Qual é a relevância de se ser "bom aluno" que neste caso significa "ter boas notas"?
Ser bom aluno é mesmo ter boas notas ou é outra coisa muito mais essencial de que já nos esquecemos? A vontade de aprender, a capacidade de pensar autonomamente, de refletir, de questionar, de criar, de ultrapassar obstáculos...
O que é que "ter boas notas" me trouxe? O que contribuiu para a construção da minha personalidade? O que me preparou para a vida?
Quanto dessa "boa aluna" tem a ver com o que sou hoje? E finalmente, o que tem a ver "ter boas notas" com "deixar o mundo melhor"?
Teria mais perguntas ainda mas estas são as que mais me têm martelado na cabeça.
Einstein, consta, era um "péssimo" aluno. Só começou a falar aos 4 anos e a ler aos 7. Os pais e professores até chegaram a pensar que teria um problema mental.
Einstein não era um péssimo aluno, sempre foi muito inteligente e teria facilidade em aprender, mas estava desadaptado em relação ao modelo educacional da época. Como ninguém duvidará Einstein contribui para deixar um mundo melhor.
O cientista e astrónomo Isaac Newton não foi um aluno brilhante. Tirava notas razoáveis mas não se esforçava mais do que o necessário e não se destacava nas aulas. Quem duvida da contribuição de Newton para o mundo?
Podia aqui continuar com exemplos mas não é necessário vocês conhecem.
Este conceito de "bom aluno" está muito interiorizado em nós e nem nos apercebemos. Vi-me muitas vezes a fazer a mesma pergunta a crianças em idade escolar "então gostas da escolinha, tens boas notas?"
Há uma frase de um livro que já não me lembro se seria de Virgílio Ferreira em que alguém pergunta sistematicamente "Então, e que tal de notas?" e a criança treme.
Por estranho que possa parecer, este modelo de "bom aluno" afeta quem entra em transição.
Em 1999 completei o meu MBA, mestrado em gestão, pela Open University Business School. Foram 4 anos de descoberta, de aprendizagem de temas diferentes mas também de sacrifício porque trabalhava e os meus filhos eram pequenos. Lembro-me que estudava à noite quando eles estavam na cama e no início adormecia em cima do computador.
Recebi o meu diploma em Cambridge com pompa e circunstância, nisto os britânicos não brincam. A cerimónia envolveu centenas de alunos da Universidade, de diferentes cursos, de diferentes países e de diferentes idades e gerações .
Todos tínhamos que subir ao palco com o uniforme do seu curso. Lembro-me de uma senhora me estar a vestir o uniforme e dizer que o do meu curso era o mais bonito. Provavelmente disse isso a todos mas eu senti orgulho mesmo não sendo dada a estas ritualidades.
Mas o que mais me impressionou e ficou gravado para sempre na minha memória, foi ver um senhor com os seus 80 anos, o mais velho da cerimonia provavelmente, receber o diploma de "História de Arte". Esse senhor teve que ser ajudado a subir os degraus para o palco porque era invisual. Outro, com 70 e tal anos, também foi ajudado porque estava em cadeira de rodas. Na mesma cerimonia estavam avós e netos que se graduavam ao mesmo tempo. Foi lindo.
O que me ocorreu foi pensar "o que faz estas pessoas tirarem um curso com esta idade? Já não precisam do diploma para nada." Não precisam? Não precisam para quê?
Apercebi-me que ao ter este pensamento estava a ser condicionada pelo velho modelo de escola que ainda tinha na minha cabeça. Seguramente estas pessoas não estavam preocupadas com as notas ou com ter um diploma, sendo que terem conseguido um diploma foi seguramente um motivo de orgulho pessoal. O que as motivava era o prazer de aprender e essa é uma motivação intrínseca e não extrínseca e por isso não tem idade.
Muitas pessoas ficam estagnadas na transição por este pensamento limitante de que "agora já não vale a pena, agora já não precisam".
Vem-me à memória a frase que o meu pai tanto repetia: "o saber não ocupa lugar".
O saber não ocupa lugar e não tem idade também.
O que vais aprender hoje?
O que vais aprender quando te reformares?
O que gostarias de saber mesmo que não houvesse ninguém no mundo para te observar?
Hélia Jorge
23/09/2022
Fotografia de Hélia Jorge