Emoções culturais

Nasci num caldeirão cheio de emoções: as dos meus pais, dos meus avós, dos meus tios, primos e vizinhos que viviam todos na mesma quinta quando cheguei ao mundo.
E, até aos 10 anos, cresci ao ritmo de sensações que mais tarde vim a saber, seriam as minhas emoções "primárias", necessárias à minha sobrevivência de criança, mas que ficaram como fortes marcadores da minha personalidade.
Foi na voz da minha mãe, quando ela cantava as canções populares, que aprendi a Alegria. Ficava com o rosto rosado e liso, o corpo ligeiro e levava-me nas saias a rodar pela casa fora, num rodopio de felicidade.
Eu ria à gargalhada, e saltitava entusiasmada.
Também foi na voz dela que descobri a Tristeza quando cantava o fado. Era sempre estranho. Não compreendia a letra, mas o corpo da minha mãe ficava como cansado, e ausente.
Ficaram na minha memoria as horas, sentada, à beira da máquina de costura, com a minha mãe presa aos tecidos, e o canto lento que deslizava, pesado, num sorriso desfeito.
Vivia a Tristeza dela, calada, e ficava triste por mimetismo.
Em certas alturas, eu via as lágrimas correr-lhe pelo rosto, e sabia que nesses momentos, não devia saltitar de contente, nem questionar a Tristeza.
Recordo o meu avô e a minha avó quando me metiam numa alcofa, e me guardavam no meio do faval, ou me ensinavam a apanhar a fruta madura. Vim a perceber que era Amor, anos mais tarde.
Como também era Amor, os suspiros dos meus pais, que ouvia através das paredes mal isoladas da nossa humilde casa.
Foi graças a um dos meus tios que aprendi a violência da Raiva quando aparecia cheio de fúria. No meio da minha paz infantil, descobri como os corpos de certas pessoas se alteravam com tais sentimentos: a cara dele ficava transformada com os gritos, os braços e as pernas desarticulavam-se.
Foi uma das pessoas que me levou a conhecer o Medo, e a manifestação física que ele me dava com as minhas pernitas a tremer. Havia também o Medo do escuro que, esse, me arrepiava os braços, quando subia a azinhaga no inverno.
Aos 10 anos, o caldeirão das emoções enraizadas nos valores e práticas da minha infância, desapareceu.
Os meus pais levaram-me para França.
Começou então uma nova era emocional, construída na aprendizagem do que era agora "de bom gosto" ou de "mau gosto", daquilo que se deve ou não dizer e fazer.
Entrei no mundo da disciplina emocional, fortemente gerida por códigos sociais.
A Alegria que me dava a minha mãe ao cantar, ou a Tristeza que partilhava com ela não dava origem nem a saltitar pelas ruas, nem a choros pelos passeios.
Na sociedade que integrei, compreendi muito rapidamente que as minhas emoções, que trazia de criança, teriam de ser geridas, orientadas e controladas em termos de manifestação física e que a área já não seria a quinta.
As minhas emoções tornaram-se expressões caseiras, discretas no interior do nosso novo lar.
Não ficava bem falar alto se estava zangada, pular se estava contente, em qualquer sítio, ou partilhar com quem quer que fosse.
Aprendi a esconder a tristeza e amenizar a alegria que poderia fazer nascer ciúmes.
Cresci depressa e integrei como as práticas e gostos culturais podem mexer com os sentimentos e as emoções, e a maneira como os moldam.
Percebi que as regras e normas especificas do novo contexto onde vivia iriam enquadrar as minhas emoções.
Anos mais tarde realizei que, na verdade, nada tinha perdido, das minhas emoções "primárias".
Muito pelo contrário. Foram a primeira camada biológica e quase "selvagem", da minha construção como adolescente, e como mulher, as emoções que me iriam permitir não aceitar o intolerável, nem deixar de rir ou de chorar e de viver experiências emocionantes sem limites...mas com alguns filtros!
Aprender em acelerado, a canalizar as manifestações físicas e comportamentais, resultantes dos meus vários estados emocionais, foi violento na altura da transição. Mas, reconheço que resultou extremamente positivo.
A expressão das minhas emoções revela o que se passa, naturalmente, dentro de mim, mas acabei por admitir que, em determinadas circunstâncias, podiam impedir o meu bom relacionamento com os outros, e dificultar a minha integração social e profissional.
No entanto, a adaptação das minhas emoções não impediu que elas se soltassem e que as partilhe hoje com entusiasmo e energia…
São o motor da minha vida.
Maria da Graça Raposo, fevereiro de 2025