Do falar ao escutar... ativamente
No final dos anos setenta, muito jovem, iniciei-me no voluntariado, no serviço de internamento de crianças com doenças de sangue, no Hospital de D. Estefânia, onde permaneci por uns três anos. O que os voluntários faziam era ajudar na toma das refeições, brincar com as crianças e fazer-lhes companhia. À época, ainda não era permitido aos pais ficarem com os filhos internados. Isso impressionava-me: estava eu ali, uma rapariguita, a acompanhar as crianças cujos pais só lhes tinham acesso nas horas de visita… Foi uma experiência muito gratificante, marcante: sentia-me útil e percebi, de forma concreta, que havia uma imensa área de possibilidades de se ser útil aberta a quem tivesse alguma disponibilidade para tal.
Cerca de vinte anos depois, voltei a ser voluntária, desta vez na associação Acreditar, no Serviço de Pediatria do IPO (internamento) por um período de uns quatro anos. Recebida uma formação muito completa e adequada, ministrada por médicos, entre os quais o Dr. António Gentil Martins, e enfermeiras, para além dos responsáveis da Acreditar, iniciei o voluntariado mais marcante da minha vida, onde, com extrema emoção, verifiquei, continuadamente, que uma criança é sempre uma criança, mesmo na situação de internamento. A não ser que muito prostradas por situação clínica, mostravam as imensas vivacidade, criatividade, vontade de brincar inerentes à infância, o que quase nos fazia esquecer o que as levara ali. Guardo também os olhares, a presença, a sabedoria, a heroicidade, até no sentido de humor, a persistência, as imensas coragem e dedicação das muitas mães e dos muitos pais que ali acompanhavam os seus filhos. Transmitiam-me que, independentemente, das transformações físicas que a doença operara nos seus meninos e nas suas meninas, eles e elas eram sempre belos. Não posso também esquecer a imensa humanidade e dedicação de todo o pessoal médico e de enfermagem com que contactei. Ali, através daquelas meninas e daqueles meninos, daquelas mães e daqueles pais e daqueles profissionais, aprendi imenso para a vida.
Por fim, no início de 2017, após ter terminado a minha formação em Psicologia Clínica e me ter tornado membro da OPP, iniciei o meu voluntariado no Gabinete de Escuta (GEscuta -https://www.gabinetedeescuta.pt/ ), onde permaneço. Trata-se de um serviço formado por uma equipa diversificada e multidisciplinar de pessoas com formação específica, que presta acompanhamento emocional e existencial, de forma gratuita e confidencial, a quem o deseje.
Nem a minha formação académica inicial, nem a profissão de toda uma vida (professora) se inscrevem na Psicologia Clínica, mas sempre fui apaixonada por essa área e, assim que tive oportunidade para tal, formei-me nesse âmbito. Ao saber da existência do Gabinete de Escuta em Portugal (já conhecia o modelo dos "Centros de Escucha" de Espanha, implantado há muitos anos e existente em todo o país), contactei de imediato o serviço e propus-me como voluntária. Assim, fui conciliando uma profissão exigente e absorvente, com um voluntariado (uma tarde por semana) também exigente e absorvente, mas que sempre senti que me libertava dos constrangimentos e desilusões da profissão de professora e muito me enriquecia humanamente. Passava da pessoa que é suposto falar bastante, para aquela que deve, acima de tudo, escutar e saber escutar ativamente. Não é fácil… É uma aprendizagem constante, direi para a vida.
Agora, aposentada recentemente, sinto que me entrego com muito mais disponibilidade e entusiamo a este voluntariado ao qual tenciono dedicar mais tempo, não só nos atendimentos, mas também na prossecução da formação.
Quanto a formação, com outros membros da equipa, recebi a essencial no método usado no Gabinete de Escuta para o acompanhamento psicoemocional - Relação de Ajuda/ Counselling - durante alguns fins de semana, em Vigo, e, atualmente, aprofundo o modelo num curso à distância facilitado pelo Humanizar - Centro de Humanización de la salud, espanhol, https://www.humanizar.es/.
Que mais poderei dizer? Que este voluntariado me realiza bastante, para além de me enriquecer humanamente: efetivamente, sinto que recebo muito mais do que dou.
Havendo tantas possibilidades tão diversificadas de voluntariado, aconselho vivamente a quem ainda não experimentou que escolha algum tipo que sinta agradar-lhe.
Ana Nunes, maio 2023
Nota: o atendimento no Gabinete de Escuta pode ser marcado pelo telefone 964 400 675, ou pelo email gescuta@gmail.com, havendo três gabinetes em funcionamento: Centro Comercial Colombo – Capela (Av. Lusíada, 1500-392, Lisboa); Igreja de São Mamede (Largo de S. Mamede, 1, 1250-100, Lisboa); Centro Social Paroquial de São Julião da Barra (Av. Dom João I, 2780-065 Oeiras).