Confluência
Não sei exatamente onde se juntam a ribeira de Sor e a ribeira de Raia: algures na freguesia do Couço. Mas sei onde passa o rio Sorraia e que este rio tornou-se um atrativo para a pesca desportiva e para a canoagem, graças aos açudes a montante e a jusante que aprisionam a água. Também sei que este rio se junta ao rio Tejo, algures perto de Alcochete, mas não sei precisar onde desagua. E que foram encontrados cavalos nesta charneca, dos quais restam poucos exemplares, resistentes, baixotes mas não póneis, de pelagem rato predominante e crinas escuras, ainda com zebraduras e risca de mulo, que por aqui terem pastado, Sorraia se designa a raça.
Os rios são correntes de união: sem água nada há, não é assim? Mas para um caudal de água chamar-se de rio, por norma, muitos pequenos caudais têm de se juntar. Não se juntam todos no mesmo sítio, vão confluindo aqui e ali até criarem um percurso largo e volumoso, quase sempre navegável e rico em peixe e nutrientes. Em tempos, os rios eram trilhos de encontros e desencontros, de esperança e de luto, de trabalho e comércio, fluxos de progresso e de partilha. O Sorraia percorre quilómetros de terras e o escoamento de produtos agrícolas e florestais fazia-se por esta via até o rio ficar preso na ambição das gentes. E as cheias têm sido coisa do passado. Sim, que um rio não depende de si: sem a chuva ou a neve que derrete não há rios, há leitos secos; e com a mão do Homem, muito é alterado.
O rio Sorraia é alimentado por ribeiras que galgam caminhos desde sítios que não supunha. Sor começa em Alagoa, Raia em Cabeção, e estas duas ribeiras que lhe deram o nome acolhem muitas outras ribeiras. Estes fios de água proporcionam recantos ocultos, de mágica beleza e tranquilidade. Só temos que estar dispostos a não ver só o resultado final, que é sempre belo sem dúvida, e procurar o detalhe do todo e o engenho do mundo. Até no Sorraia desagua um rio, o rio Almansor. São estas muitas confluências que fazem a grandiosidade do visível, ou melhor dizendo, do mais visível.
Acho que tudo é confluência. Também me parece que só os humanos gostam e fomentam a divergência. Será que não apreciamos os detalhes e estamos sempre à procura do estado perdido? Nada é suficiente, tudo é insatisfatório, temos sempre que estar em movimento para preencher o vazio. Não sei por que temos a sensação de vazio ou de que nos falta qualquer coisa, o que às vezes tanto expressamos. Talvez por desprezarmos os detalhes e não nos vermos como um rio que se faz com a ajuda de ribeiros, da chuva e da neve, e do universo. Confluência sem detalhe deve ser como coser sem linha.
A fotografia foi tirada em Coruche, na margem habitada da vila, no dia 11 de março de 2022, às 17h36. O Sorraia bordeja esta pacata vila. Estes detalhes podem parecer supérfluos. Mas só mesmo com a confluência de inumeráveis particularidades, detalhes deste todo em que vivemos, algumas que podemos objetivar, foi possível captar esta imagem. Nada divergiu, tudo se concentrou no ínfimo e supremo momento. E se quando presente senti tranquilidade e fiquei extasiada com a beleza, agora que contemplo esta aparente matéria inerte, renovo-me na plenitude e embrenho-me de serenidade. Uma imagem vivida é uma memória expandida.
Texto e fotografia de Alexandra Carvalho