As várias tragédias das Ruas das Flores
I - Quando se fala na Tragédia da Rua das Flores, lembro-me do romance de Eça de Queiroz postumamente publicado (1), em que Genoveva se suicida projectando-se para a rua, ao saber que o jovem Victor por quem se apaixonara e com quem pretendia casar-se, era seu filho.
II - Esta obra é ficção, mas Eça inspirou-se, provavelmente, no crime cometido pelo seu contemporâneo Vieira de Castro na Rua das Flores e em que o seu amigo Ramalho Ortigão, foi um dos protagonistas (2). A tragédia resultou no assassinato de Claudina Guimarães, filha de um rico emigrante português no Brasil, às mãos do seu marido, então já uma figura conhecida e com enorme prestígio na elite política do regime constitucional português: José Cardoso Vieira de Castro.
Herdeiro de uma família ilustre, procurou no Brasil casamento e fortuna. Regressou ao Porto após contrair matrimónio com Claudina, filha de um emigrante natural de Fafe, tendo-se instalado na Maia. Mais tarde vieram para Lisboa, tendo ficado a residir num 2º andar do nº 109 na Rua das Flores. Nesta casa onde o casal se dava a conhecer à sociedade lisboeta, reuniam-se intelectuais, artistas e políticos como Ramalho Ortigão, Camilo Castelo Branco, Levy Maria Jordão, José Maria Almeida Garret (sobrinho do escritor) e talvez Eça(3) em animadas tertúlias e debates.
Tendo descoberto esta relação, Viera de Castro pede a Ramalho Ortigão que desafie José Maria para um duelo. O amante ter-se-á recusado a confrontá-lo, propondo, em alternativa, sair do país como autopunição da sua falta. Vieira de Castro não se conteve e a 9 de Maio de 1870, depois de adormecer Claudina com clorofórmio, sufocou-a com a roupa da cama quando toda a criadagem já dormia (4).
O assunto terá apaixonado a sociedade portuguesa de então, com posições muito divergentes a favor e contra Vieira de Castro. Um dos seus mais acérrimos defensores foi Camilo Castelo Branco, seu amigo de longa data, não deixando de ser curioso que o autor "Amor de Perdição" tenha tomado partido do marido ofendido, quando ele próprio assumiu atitude contrária no caso Ana Plácido, opondo-se ao marido legítimo desta, o comerciante portuense Pinheiro Alves. O réu e brilhante parlamentar foi condenado a dez anos de degredo e cinco de prisão efectiva, tendo morrido em Luanda dois anos após o homicídio.
III - Um outro crime viria a ser cometido nesta rua pelo facínora e serial-killer Diogo Alves, mais conhecido por "o Pancada" (5), que terá nascido na Galiza em 1810 e emigrado aos treze anos para Lisboa, à procura de trabalho. De início fazia alguns biscates em casas de famílias abastadas, trabalhado, igualmente, nas obras do Aqueduto das Águas Livres.
À época, a passagem pedestre no cimo do aqueduto era muito utilizada pelas lavadeiras e agricultores oriundos de Benfica, Queluz, Belas e restante zona ocidental, que traziam os seus produtos para vender na cidade. Entre 1836 e 1839, no regresso a casa e ao cair da noite, Diogo atacava-os e extorquindo-lhes o dinheiro, atirando-os depois do topo dessa estrutura.
De início, as autoridades pensavam tratar-se de suicídios, pois a maioria eram pessoas de fracas posses, numa altura em que grassava a miséria e a depressão, na ressaca das guerras liberais. Porém, as mortes por queda sobre o vale de Alcântara não paravam de aumentar, ascendendo já a várias dezenas. Guarneceram então as entrada e saída da passagem do aqueduto, mas ainda assim, o Pancada escondia-se e atacava. Após a morte de quatro pessoas da mesma família e de um jardineiro da Infanta Isabel Maria, a intendência encerrou a passagem pelo aqueduto.
Alcoólico, incapaz de se adaptar a um estilo de vida honesto e sob a influência de Gertrudes Maria (a Parreirinha) com quem se amantizara e vivia na companhia de dois filhos desta. Na tasca da Gertrudes que ficava ali para Palhavã, organiza uma quadrilha e começa a assaltar habitações. Ficaram famosas, entre outras, as realizadas a uma idosa senhora na Estrela e à do médico Pedro de Andrade e à sua família na Rua do Alecrim nº 36 na noite de 26 de Setembro de 1839 com várias vítimas (a Rua do Alecrim é paralela à Rua das Flores, daí que os crimes lhes estejam associados).
Para além das testemunhas sobreviventes, a filha da Parreirinha denunciou Diogo Alves, enquanto um outro membro da quadrilha conhecido por "Enterrador", foi apanhado em flagrante a assaltar uma moradia, acabando por confessar os crimes e entregar os restantes assassinos. Após ter admitido a culpa deste caso e de outros, Diogo Alves (considerado o primeiro serial killer português), é condenado à morte por enforcamento em 1840, sendo cumprida a sentença a 19 de Fevereiro de 1841. Curiosamente, até 1852 continuaram a ocorrer mortes no Aqueduto das Águas Livres!!!... Mas as tragédias não se ficaram apenas por Lisboa.
IV - A 29 de Março de 1890 nos nº 74 da Rua das Flores no Porto, outro crime teve lugar, aparentemente perpetrado por um médico ilustre e professor da Escola Médica e amigo de Camilo Castelo Branco, chamado Vicente Urbino de Freitas. O processo ardiloso presumivelmente por si engendrado, visava ver-se livre dos herdeiros da fortuna do seu sogro, nomeadamente, o cunhado José Sampaio Júnior residente em Lisboa e os três sobrinhos que viviam com os avós, na Rua das Flores.
As crianças terão recebido pela Páscoa uma encomenda enviada de Lisboa por um remetente desconhecido, contendo três caixas de amêndoas e três bolos de coco recheados com chocolate(6), presumivelmente envenenados, tendo resultado em consequência a intoxicação das crianças e o óbito de Mário, o sobrinho mais velho de catorze anos. O cunhado José Sampaio Júnior, deslocado em Lisboa, já teria sido igualmente envenenado no Natal de 1889, quando vai ao Porto para tentar obter a bênção do pai, acabando por falecer a 2 de Janeiro de 1890 no Grande Hotel Paris em horrorosa agonia e com "vómitos sanguíneos", que "se deitaram fora" por indicação de Urbino de Freitas, que tinha sido chamado para o auxiliar.
A polícia actuou rapidamente registando contradições no inquérito e colhendo provas, tendo eventualmente sido encontrados vestígios nas vísceras de derivados do ópio, nomeadamente, morfina e delfinina. Estes resultados, porém, são contestados por especialistas internacionais contratados pela defesa, mas Urbino de Freitas é preso a 16 de Abril de 1890, condenado a 8 anos de cadeia e degredado para Angola.
Segundo o escritor Gomes Monteiro, citado num muito interessante e completo artigo de Nelson Marques(6), uma das principais razões da condenação do réu foi o interesse invulgar do Delegado do Ministério Público, Pestana da Silva que teria sido rejeitado por Maria das Dores, que tinha escolhido para marido, Vicente Urbino de Freitas.
Um estudo recente efectuado ao cadáver de José Sampaio 130 anos mais tarde por Ricardo Diniz Oliveira, professor e investigador de Toxicologia Clínica do Instituto de Ciências da Saúde e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, põe em causa o exame toxicológico no que respeita às ditas substâncias (7).
Concluo pois, que ocorreram várias tragédias mediáticas nas Ruas das Flores de Lisboa e do Porto, algumas passionais e outras motivadas pelo interesse ou extorsão, sem descartar aquelas mais íntimas, fruto da imaginação de escritores e, porventura, de homens de leis e da saúde.
Referências:
· Queiroz. Eça - A Tragédia da Rua das Flores; Livros do Brasil, 2018;
· Queiroz. Eça - A Tragédia da Rua das Flores; Livros do Brasil, 2018; Pág 13;
· Blogue - D Afonso Henriques; A Tragédia da Rua das Flores, 21 Fevereiro de 2012 (Consultado a 1-01-2023);
· Fernandes, Catarina - A história de Diogo Alves, o serial killer do Aqueduto das Águas Livres, National Geographic - acedido a 01-03-2023;
· Blogue - O Sal da História; 14 de Dezembro de 2017, consultado a 10-01-2023;
· Marques, Nelson - O crime da rua das Flores; Expresso Revista, 12-01-2019;
· Pinheiro, Susana - Investigador reconstrói crime da Rua das Flores 130 anos depois e descobre: "O suspeito hoje não seria condenado"; CNN, 29 de Janeiro 2022
Lisboa, 11 de Janeiro de 2023
José Aleixo Dias