As Ricardinas
Encontros imprevistos
Ricardina, a Segunda (II)
Estamos em 2021. Costa litoral Centro. É o fim do Verão. Este ano, o Verão foi ameno, um ou outro dia nos "trintas", a maior parte dos dias entre os vinte e cinco e os trinta graus. Muitos dias com vento, que não incomodava quem estivesse por casa.
Nesta família, as janelas estão sempre abertas. Faça sol, vento ou chuva: o que muda é totalmente abertas, meio abertas ou uma frestinha.
Bem, isto tudo para dizer, que entro no quarto e...estupefação! Uma osguinha no chão de pata levantada, naquela posição tão típica dos lagartos e afins. Calculo que ao ouvir o barulho dos passos se tenha preparado para a fuga. Qual quê, inerte, qual bibelô.
Passado o meu espanto, que admito não foi muito (já vão entender), disse-lhe: "Ricardina, não te mexas! Volto já!". Rápida, fui à cozinha buscar a pá e a vassoura, daquelas pás e vassouras mini com cabos altos, e regressei com receio que Ricardina já tivesse dado de frosques. Impávida, de pata no ar. Aproximo a pá e com a vassoura empurro-a e pressiono para ela não fugir. Mas não pressionei o suficiente, e Ricardina (a Segunda) foge. Depois de um bailado (lembrei-me agora de Petruska de Stravinsky), um "pas de deux" esgrimido, foi mesmo pá e "deux" (eu era uma mera condutora de energia), lá consegui recolocar a Ricardina na pá e desta vez pressionei mesmo a sério! Já chegava de brincadeira!
Corri até à janela da cozinha e pus a pá de fora, esperando que o bicho percebesse que seria bom dar um salto mortal, um flic flac à retaguarda, enfim, zarpasse! Então, não é que queria voltar para a casa? Pronto! Dei-lhe uma vassourada e espero (quase de certeza) que tenha aterrado bem. Foi difícil distingui-la na calçada, mas lá a vi subir o muro do jardim em frente.
Ricardina, a Primeira (I)
Algures numa aldeia no sopé da Serra da Arrábida. Entre 1990 e 1996, um dia diferente, uns meses de coabitação, convivendo com o inesperado. Primavera, ou talvez já fosse Verão. Casa quente de miúdos. Alvorada, sim, que com crianças não estão à espera de tomar o pequeno-almoço às oito, não é?
Estamos no vestíbulo dos quartos, a prepararmo-nos para descer as escadas, e o João, que tem pouco mais de dois anos mas sempre foi muito explicado e começou a falar muito cedo com um vozeirão que faria inveja a qualquer barítono, grita: "Tia, um lagarto na parede!".
Espanto e gritinhos da miudagem. Espanto meu. Então não é que uma pequena osga com pouco mais de, assim à vista desarmada, diria, cinco centímetros, estava na parte superior da parede que ladeava as escadas? Excitação total, confusão, muitas opiniões, alguns medos, e em poucos minutos duas fações: os que queriam apanhar a osga e os que queriam ver para onde ela ia. Pequeno almoço?
Sentámo-nos todos para falar sobre o bicho e decidir. Ninguém tinha ouvido falar em osgas, lá fui informando o que sabia (mais tarde consultámos um livro - sim, não havia computador), e ficou decidido que iríamos tomar o pequeno-almoço. Muitas saídas da mesa, muita conversa, e a Francisca lutou para que o bicho tivesse um nome, nome de gente. Confesso que nunca gostei de animais com nome de gente, mas como contrariar? Também não seria por muito tempo, pensei eu.
Entre os nomes correntes que os miúdos conheciam, e a ligação aos seus afetos, comecei a bombardeá-los com nomes pouco vulgares: Felismina, Ambrósio (o do anúncio), Maximiliano (o imperador), Fortunato, Teodósio (outro imperador),Pancrácia (nome muito usada na família para gozarmos umas com as outras),..., e começou a discussão se seria menina ou menino (ajudem-me! pedia a mim). Decidido o sexo, já não me lembro qual a caraterística fundamental, pois o bicho continuava impávido e sereno, acho que nem se mexeu, o António, que era (e ainda é) tímido, puxa-me a manga e diz na sua vozinha de quatro anos: "Ricardina".
Delírio total. Eu adorei, incentivei o António, e as crianças divertidas nem questionaram mais e passámos o fim de semana a controlar a Ricardina. Já tinha nome, fora de questão pô-la fora de casa. Verdade se diga, a Ricardina não se mexeu. Nem a cauda. É claro, que os adultos não acharam muita graça, por demais citadinos a maior parte. Vantagem de ser a senhoria.
A Ricardina coabitou durante cerca de três meses, talvez mais. Eu vi-a, vimo-la, sempre na mesma posição, no mesmo sítio, apenas sempre maior. Presumo que se deslocasse durante os silêncios da casa, mas o certo é que o local de observação era o mesmo. Um milímetrozinho mais a cima? Mais abaixo? Nunca esclareceu.
Os habitantes e os visitantes passaram a cumprimentar a Ricardina e a vê-la crescer, sem a ver comer. E sempre no mesmo local. Ultrapassada a reação inicial de desagrado (há bichos que estão sempre em desvantagem), habituámo-nos ou, a maior parte das vezes, já nem reparávamos na Ricardina. Salvo eu, que tinha que fazer, no início, uma espécie de noticiário diário.
Um dia, a Ricardina decidiu que já estava cansada e lhe doíam as patas certamente. Nunca mais a vimos e muito a procurámos.
As Ricardinas
Não é bicho que se veja com frequência nos tempos que correm mesmo no campo e nos jardins citadinos. Quando era criança, e os primeiros anos da minha vida foram campestres e toda a vida sempre ligada ao campo, era vulgar ver osgas nas paredes, especialmente aquelas paredes que tinham trepadeiras a bordejar as janelas. Na altura era um bicho pouco apreciado, se bem que adorássemos persegui-las quando crianças. Não apanhámos, nem uma.
As vivências e os afetos alteram as nossas perceções ou melhor os estereótipos que apreendemos e aprendemos. Não tinha nada contra as osgas, até me divertiam, mas o mais importante era agradar aos adultos que amava.
Com a Ricardina, a Primeira, deixou de haver osgas. Perguntem a quem contei o recente encontro com a Ricardina, a Segunda: Ricardina, quem é a Ricardina? Pela porta da varanda?
Alexandra Carvalho