A vida é um luxo
Tinham-se passado seis dias de chuva intensa, com inundações e elevados estragos nas zonas baixas da cidade, nomeadamente em Algés.
Saí hoje com o meu cão pelas 6 da manhã, como habitualmente para a sua voltinha higiénica matinal. Nas imediações desta zona e ao dobrar a esquina junto ao Hospital do Gato, eis que ele descobre um pombo escuro cambaleante na valeta, arrastando-se de asa bamba e tentando, de forma inglória, aceder ao passeio.
Enquanto recolhia os seus excrementos em saco próprio, o animal correu para o pássaro e pretendeu abocá-lo, tendo ainda a pobre ave perdido umas penas na sequência desta investida. Tirei-lho com cuidado debaixo das patas. Estava gelado e sujo de lama negra.
Fechei-lhe as asas e segurei-o com a mão esquerda, envolvi-o num pequeno lenço de papel que tinha no bolso, encostei-o ao meu peito e voltámos para casa, debaixo de uma chuva miudinha intensa que o guarda-chuva tinha dificuldade em rechaçar.
Limpei-o melhor que pude sem nunca lhe abrir as asas e tentei dar-lhe um pouco de água, o que recusou.
Acabei por enrolá-lo num pano de cozinha, coloquei-o no meu carro e dirigi-me à urgência de um hospital veterinário das redondezas, onde demos entrada pelas 7:16.
Ao chegar ao local... (como habitualmente relatam os bombeiros), o pombo apresentava-se um pouco mais desperto, embora desidratado (olhos encovados) e em hipotermia.
- Como se chama o animal?
- Pombo!
- Tem cá ficha?
- Ele não. Quem tem ficha é o meu cão.
- Mas o Sr. é o dono do pombo. Certo?
- Não, minha senhora, eu sou apenas a pessoa que apanhou o pombo do chão e lhe pretende proporcionar ajuda.
- Muito bem! Então o senhor é o responsável pelo pombo. Tem de haver um responsável!...
- Ok! Eu pretendo que ele seja observado por um veterinário, seja avaliada a sua condição e definido um plano de tratamento e encaminhamento.
Alguns minutos depois, disse-me o médico:
- Não sei se sabe que os pombos são considerados uma praga e caso o entregasse num Centro de Conservação da Natureza, seria eutanasiado.
- A sério? Mas, o animal não deve ter deixado isso escrito no seu testamento vital?...
- Hum!...
O RX revelou uma hepatomegalia e fractura do rádio da asa esquerda, em resultado das quais ficou internado. Está agora a ser alimentado, a fazer antibiótico e analgésico. Aguardam-se análises e a recuperação do seu estado geral, para programação de cirurgia correctiva.
Entretanto telefonaram-me.
O veterinário especialista em "exóticos" esteve a observar o pombito (a que eu já chamo Pedrouços) e afinal, além da fractura do rádio da asa esquerda, existe outra no segmento distal do mesmo membro.
Para além da componente óssea, confirma-se a sua extrema desidratação, dilatação hepática (vamos ver se não há laceração) e afectação de vários os sacos aéreos, ficando a alimentação forçada, pois não a toma de forma espontânea.
Face ao local onde foi encontrado e às lesões que apresenta, é bem provável que tenha sido colhido por uma viatura, ou mesmo atropelado.
- Mas estás a gastar dinheiro para salvar a vida de um pombo? Ainda por cima, uma espécie de aves que transmite doenças ao homem?
- É a vida de um pombo, mas é uma vida! Este pombo, que eu saiba, não pediu que lhe desligassem a máquina.
Vamos continuar a acompanhar a situação.
A voltinha da manhã não saiu barata, mas estou feliz por contribuir para a sua recuperação, esperando poder devolvê-lo à liberdade dentro de duas semanas, com a ajuda dos meus netos.
A eutanásia teria sido muito mais barata.
Seria? Para quem?
Lisboa 15-12-2022
José Aleixo Dias