A viagem
Encontrar um povo e pulsarmos em afetos e sentimentos é um acontecimento extraordinário. Há um sentimento que nos faz maiores, o da pertença. Murmuramos ao vento: eu sou do mundo, quando os nossos pés se firmam no caminho inexplorado e sentimo-nos parte daquele viver.
Há precisamente trinta anos fiz uma viagem. Ventos do Sul, terra de cordilheiras, planícies, lagos, mar, costa de uma ponta à outra, estreitos e ilhas. Terra de extremos, de glaciares a desertos, de secura a humidade na roupa que se torna pele. Mistura de povos de longos cabelos negros e lustrosos, cor de azeviche, castanhos, ruivos, e os magníficos de cor de trigo. Loiros, acho mesmo que só os pintados. Raramente curtos, mesmos os rapazes e os homens cultivavam a cabeleira. Esta é uma imagem que se impregnou: a beleza dos cabelos, as cores e o brilho.
Uma cultura universalista. Fala-se de tudo um pouco, sabe-se onde vivem e quem são os povos, as religiões e as políticas, onde nasce o Sol, quem está a sofrer para além dos pequenos reveses, quem vibra com as expetativas alcançadas. Conheciam o mundo, o seu viver e o viver dos outros. Que conversas interessantes com o motorista de táxi, com o vizinho da mesa do café, com o dançante nas ruas do bairro. Não foi propriamente uma surpresa. A literatura rechaça os limites do nosso quotidiano e abre as perspetivas e a nossa capacidade de lidar com o diverso. Li escritos de autores deste país e de outros deste continente que, tal como o El Niño, influenciam todo o planeta. Entre a realidade e a ficção, a identidade constrói-se e criam-se os laços.
Um rio de prata, uma luminosidade lisboeta, horizontes perdidos no limite longínquo sem tempo contado, um vizinho à mão de uma barcaça, um atropelamento de mais de metade da população do país na capital. Que dizer dos contrastes de um bairro chamado de Palermo Chico - de traça britânica, com moradias e jardins, ruas sem saída ou sinuosas, e dos bairros de esquadria de retas e perpendiculares, tão espanhola? Da enorme e larga avenida 9 de Julho, com tantas faixas centrais e laterais, que nunca consegui atravessar de seguida, ficando sempre mais à frente ou mais atrás num separador, à espera da mudança do sinal? Dos passeios largos, dos frescos e harmoniosos jardins públicos cuidados com o patrocínio de empresas, sempre pejados de gente e de músicos, e dos passeadores de cães, que nunca tinha visto nem sabia que tal ocupação existia, com matilhas de dez, quinze animais quase todos com trela e a figurinha humana a orientar as hostes? Das frondosas "tipas" (termo local, que creio serem as tipuanas), que também as há por cá tal como os jacarandás, por certo não tão poderosas e seculares, com as florzinhas amarelas e sombras gigantes? Do ritmo estonteante de uma cidade fervilhante dos contrastes de um caldo de origens, onde o castelhano que se houve é suave e absorveu palavras portuguesas como o bom dia? Uma aventura feita de gente cativante.
Nada melhor para conhecer os detalhes do que calcorrear um lugar, uma cidade. Os encontros espontâneos com as pessoas, os sorrisos abertos e curiosos, as orientações acompanhadas porque o destino passa por lá ou por perto, o apontar de algo que acham importante que seja conhecido e que acreditam não vem no roteiro. Foi assim que dei conta das milongas dançadas por um par masculino, e não o tango tão falado, tão estilizado nas casas de espetáculos e tão corpóreo nas ruas do bairro, onde o passante é convidado para rodopiar em braços experientes. A diferença das ruas da Paris da América do Sul de prédios burgueses do final do século XIX, princípio do século XX, das dos prédios rústicos de cores vivas e contrastantes, cada parede de sua cor, do pequeno apontamento arquitetónico de matriz colonial, e do enorme bairro de lata que visto do avião até angustiou. A casa Mínima, que quase passou despercebida, para nos questionarmos do porquê de tal aproveitamento e da repetição por este mundo destas pequenas fachadas e ainda mais pequenos interiores. Os restaurantes desconhecidos, com refeições familiares, servidos com explicações risonhas e ansiedade de aprovação. As feiras de rua, com artesanato e velharias, em vários locais, mas a da Plaza de Mayo, onde também fica a estação central de comboios, local de imensa descontração e vibrante de criatividade, onde adquiri pequenos tecidos em batique* com desenhos indígenas e outros de inspiração do artista, prendas sem peso e fáceis de transportar. A incursão imprevista num campo de ténis, com o patrão refastelado numa espreguiçadeira e com ar de quem foi importunado. A azáfama da estação central entre cabazes com galinhas e patos, legumes e frutos, mochilas e malas de viagem, e vendedores de tapetes de tear ao ombro e de iguarias desconhecidas. Os táxis amarelos e pretos, quais abelhas diligentes, num turbilhão de encontros e desencontros, de destinos procurados.
As viagens de carro a Rosário, bastião da independência, e a La Plata, com diagonais perfeitas, a ida a San Isidro, uma espécie de Cascais, onde um bife de tenra e saborosa carne nos esperava, hoje corrente nos supermercados mas há trinta anos só se ouvia falar, salgado à moda dos gaúchos depois de grelhado, e o pulo ao vizinho que foi só atravessar o rio num ferry com o Sol a pratear os sulcos e as felizmente pequenas vagas pois, com frequência, este rio que não é rio fica furioso de tanto choque de correntes. Colónia de Sacramento é hoje uma cidade, terra de inspiração portuguesa, que dançou entre mãos lusas e espanholas por mais de um século, com uma praça central idêntica às praças de qualquer aglomerado alentejano, com vários edifícios setecentistas e praça de touros e hipódromo, que ainda faz as delícias dos amantes de corridas de cavalos e de apostadores. Na praça principal, uma casa térrea de traça portuguesa, entre muitas, estava em recuperação para se tornar um museu. E a placa com a indicação da Fundação Gulbenkian como financiador.
Subir o farol assente nas ruínas do convento de S. Francisco Xavier, que ajuda os navegantes de ambos os lados do rio da Prata, que na realidade é um enorme estuário juntando dois grandes rios e as águas do oceano, é uma oportunidade de ver as vistas do alto e imaginar as muitas batalhas navais entre várias nações até à independência do Uruguai e de ver ao longe a linha nebulosa e incerta de Buenos Aires, devido à saturação de humidade do ar.
E no dia do regresso, a chuva caía e alguém sentiu que era Buenos Aires a chorar, a despedir-se de mim.
Conheci uma pequena parte da Argentina e do Uruguai, mas ao longo dos anos, comodamente no sofá, tenho viajado por todas esses sítios que não vi ou que já foram alterados, admirado a flora, a fauna e os recantos escondidos ao viajante comum, continuado a ler autores sul-americanos, revivendo e prolongando a aventura no tempo. A viagem só acabará quando já não sentir.
Alexandra Carvalho
Cascais, 19 de outubro de 2023