A nuvenzinha de pêlo

24-02-2022


Os filhos cresceram e aprenderam a voar. Primeiro saiu do ninho a Águia e depois o Albatroz, duas aves reais, tal como os meus filhos de uma enorme humanidade. Ambos bem formados e lindos por fora e imensamente por dentro. Estavam preparados para iniciar uma vida autónoma e realizar os seus sonhos, a descoberta do mundo.

Aposentei-me. O meu marido continuou a trabalhar. Ao princípio era muito bom não ter de me levantar às seis e meia da manhã para entrar às 8:15, e ficar no aconchego do lar. Ia duas ou três vezes por semana ao ginásio por obrigação, pois nunca fui muito amante de exercício físico. De vez em quando ia tomar café com as minhas amigas, a maioria delas ainda no ativo. Os encontros tornaram-se cada vez mais espaçados no tempo e a solidão e o sedentarismo foram-se instalando. Claro que continuei a conviver com os filhos e netos, porém, era só ao fim de semana ou quando precisavam de apoio. Percebi que não podia continuar uma vida parada!

Após uma doença grave e incapacitante, eu e o meu marido decidimos comprar um animal de companhia: um cão.

Começámos a pesquisar raças que pudessem viver num andar sem incomodar os vizinhos. No nosso prédio era proibido ter animais. O nosso foi o pioneiro. Já houve um outro, mas ladrava tanto que foi exilado para a quinta dos donos.

Após um estudo detalhado de todas as características, o mais adequado era o West Highland Terrier, mais conhecido por Westie.

Contactei o Clube Português de Canicultura para me indicar um criador credenciado e sugeriram-me uma criadora desta raça perto de Sintra. Convidou-nos a visitá-la para apreciarmos os seus cães presencialmente e ficámos encantados. Informou-me que não tinha nenhuma ninhada tão cedo, mas indicou-nos uma criadora portuguesa de confiança que tem uma quinta em Espanha.

E lá fomos a caminho de Badajoz. A quinta é enorme, rodeada por grandes relvados. A Marta Ribeiro recebeu-nos e, de repente, apareceram dois peluches branquinhos a correr desalmadamente, irmão e irmã. A Bianca já estava de partida para Itália e nós ficámos derretidos com o seu mano. Pegámos nele e eram só lambidelas afetuosas. Fiquei logo apaixonada!

Com o nosso novelinho branco de três meses regressámos a casa. O meu marido perguntou-me que nome lhe iríamos dar e saiu-me logo Joy - a minha nova Alegria. Foi registado em Espanha e, embora digam que, de lá, nem bons ventos nem bons casamentos, isso não se aplica a cães. O Joy tem-nos proporcionado grandes gargalhadas e toda a família o adora.

Enquanto cachorro, roeu mesas e cadeiras e aniquilou a carpete da sala com tantos chichis e cocós mas, lentamente, habituou-se à rotina de arejar três vezes por dia. "Lindo menino, chichi é na rua!", a lenga-lenga diária.

Só se sente bem junto a nós e dá-nos afecto ilimitado. Ternurento, encosta a cabecinha ao nosso peito e põe-se aos saltinhos para ir para o colo. Os seus olhinhos, debaixo das farripas brancas, denotam uma compreensão fora do vulgar. É empático, sensível e preocupa-se com qualquer emoção ou nervosismo dos donos.

Já gosta de rotinas e transformou-se num relógio ambulante. A hora das refeições não falha.


" (... ) essencial do dia a dia,

cão estouvado de alegria,

cão formal de poesia,

cão-soneto de ão-ão bem martelado,(...)" (1)


Vou então tentar um JOY-SONETO-DE-ÃO-ÃO

O Joy é um poema de ternura e beleza e compreende tudo o que se diz,

A cauda está sempre em riste e ninguém por perto pode estar triste.

Mal começamos a conversar, deita-se no chão a cuscar como um aprendiz.

Cozinhar é um tormento, fareja a comida, espanto-o para não o pisar. Resiste!


Quando está muito calor, para se refrescar, deita-se à leitão assado.

Na rua é um terror! Ataca bicicletas e carros, embora lhe diga: "Cautela!"

O alvo da sua perdição são os skates e as trotinetes, latido rouco assanhado.

Há que andar com cuidado porque só por milagre não parte a trela.


As bolas saltitantes resistem pouco tempo aos seus dentes aguçados

E só sossega, trinca aqui trinca ali, até amolecerem porque estão furadas.

Bonecos com apitos são a sua paixão e não descansa até estarem calados.


Adora crianças! Fica estático a olhar para elas como se soubesse que são o futuro.

A neta Joana chama-o Josie, senta-se ao seu lado e lê-lhe histórias. Juro!

A Maria tem uma beagle Carlota muito maluca, brincando com o Joy mais maduro.


Já li vários textos na Transições sobre animais de estimação. Dão trabalho? Sim. Dão despesa? Muita. Se tivermos de nos ausentar, temos de lhe arranjar abrigo? Sim. Dão alegria? Imensa!!!


Lurdes Aleixo Dias


(1) Versos do poema CÃO de Alexandre O'Neill, in Colecção Poesia e Verdade, obra Abandono Vigiado