A morte é um dia que vale a pena viver

28-10-2021


"A morte é um dia que vale a pena viver" é o título controverso e algo chocante de um livro de Ana Cláudia Quintana Arantes, um livro que já está publicado em Portugal.

Um título que nos choca a nós ocidentais, mas que fará todo o sentido a muitos povos que encaram a morte com naturalidade e respeito.

Tropecei neste livro e nesta autora há muito pouco tempo. Alguém que me é próximo recomendou-mo e está já na minha lista. Ontem fui convidada a assistir a uma palestra da autora sobre o amadurecimento e as suas palavras despertaram em mim a curiosidade para ver dois vídeos seus que estão online no YouTube: um Ted Talk com o nome do livro e uma palestra de 2018 com o título "Como envelhecer".

https://www.transicoes.pt/l/como-envelhecer/

A Ana Cláudia é médica especialista em Cuidados Paliativos e neste livro partilha as suas experiências pessoais e profissionais e incentiva as pessoas a cultivarem relações saudáveis, a cuidarem de si próprias com a mesma dedicação com que cuidam dos parentes e amigos. Reforça a importância de terem hábitos saudáveis, sem deixarem de fazer aquilo que têm vontade e as torna felizes.

Uma das metáforas que achei fantástica na palestra de ontem e que ajuda a entender o título do livro é de que "a passagem nesta vida é como uma escola". Não estamos aqui por acaso, viemos para aprender, viemos para servir, eu diria que viemos para aprender servindo, e o dia da nossa morte deveria ser o dia em que, finalmente, recebemos o diploma.

Não interessa se a tua vida foi curta ou longa, mais penosa ou mais prazerosa, todos devíamos chegar ao fim com a sensação que o dia da nossa partida é o dia em que vamos receber o diploma pelas marcas que deixámos nesta vida.

Na conferência de ontem, Ana Cláudia refere que neste mundo, e em particular nos tempos que vivemos, nos dividimos em pessoas que precisam de ser cuidadas ou pessoas cuidadoras. Umas vezes estamos num papel, outras vezes noutro, algumas vezes nos dois. E temos que aprender as duas coisas porque de uma forma ou de outra todos passaremos por aí.

Ana Cláudia lembra que as crianças são naturalmente empáticas e cuidadoras. É da natureza humana ir ao encontro do outro e dar-lhe consolo. Como e porquê perdemos essa capacidade?

O contacto com alguém que está doente ou a morrer gera pena ou medo, e na experiência dos outros vivemos a nossa. As pessoas têm medo da emoção porque se habituaram ao mito de que não controlar a emoção é um sinal de imaturidade.

Saber cuidar é importante.

Saber cuidar não é fazermos aos outros o que gostaríamos que fizessem a nós.

Saber cuidar, diz ela, "é chegar ao pé dos outros com a curiosidade da inocência".

É escutar, é entender que há vários níveis de sofrimento, o sofrimento físico, emocional, social e espiritual.

É entender que quando nos aproximamos com a curiosidade da inocência aprendemos e recebemos tanto ou mais do que o que damos.

Todos nós, se tivermos sorte, vamos envelhecer. Ana Cláudia diz amadurecer em vez de envelhecer, e eu gosto. "Amadurecimento é ficar macio e doce" como a fruta.

Mas nem todos amadurecemos assim.

Se saber cuidar é importante, saber ser cuidado não o é menos. Quem é cuidado dá trabalho aos outros, é inevitável. Saber ser cuidado é ser grato pela oportunidade, ser grato pela dádiva.

Ana Cláudia contava que a sua mãe já em fase avançada de ELA - Esclerose Lateral Amiotrófica, e com grande perda das suas capacidades, sempre arranjava um meio de lhe agradecer, ou roubando um beijo, quando a filha lhe dava de comer à boca, ou fazendo-lhe uma festa na mão quando ela a arranjava...

Fez-me lembrar o meu irmão Samuel que das vezes que pôde comunicar no hospital sempre o fez com alegria e um sorriso de agradecimento às pessoas que dele cuidaram.

Fez-me lembrar mais recentemente o meu sogro e pai Tomaz Pessanha, que durante toda a sua vida distribuiu palavras amáveis e sorrisos a quem com ele se cruzou, ao ponto de não nos lembrarmos de alguma vez o ver triste e que continuou a fazê-lo nos poucos dias que esteve no hospital antes de partir.

Saber cuidar, saber ser cuidado duas faces da mesma moeda.

E o diploma?

O meu sogro disse no hospital nos seus últimos dias aqui neste plano "vou partir mas parto de papo cheio".

Não são muitos os que poderão dizer o mesmo. Mas enganem-se os que acham que esta frase resulta da sorte que teve. Esta frase é o resultado de algo que foi construído diariamente nos pequenos grandes gestos do dia a dia, da sua entrega aos outros.

Por estes dias, ao reler as dezenas de testemunhos que compilámos em 2014 no livro de homenagem por ocasião dos 60 anos de casados dos meus sogros, "mais 7 de namoro" acrescentava sempre ele com merecido orgulho, foi bem visível que o marido/pai/avô/bisavô/irmão/amigo Tomaz partiu para receber o diploma com distinção.

Com uma vida mais curta, o meu irmão Samuel que também partiu este ano, se alguma dúvida tivesse eu sobre se cumpriu a sua missão aqui, bastava lembrar-me do dia do seu funeral e da homenagem que lhe fizeram os muitos a quem ele deixou marcas.

Sim, também o meu irmão partiu para receber um diploma com distinção.

Ana Cláudia diz: "morrer é viver para sempre no amor que se deixou".

Tenho a certeza que os meus pais, Elvira e António Jorge, o meu sogro Tomaz Pessanha, o meu irmão Samuel e tantos mais entes queridos estão algures felizes pela missão cumprida, orgulhosamente portadores do seu diploma, e eternamente vivos pelo amor que nos deixaram.

Hélia Jorge