Alexandre Gil

Estranhos impulsos

Escrevo, sentindo os ecos da leitura recente do livro "Como Escrever" do Miguel Esteves Cardoso. Um livro que diz muito mais que tudo o que poderei dizer nesta reflexão sobre a escrita. Gosto de ouvir e ler outros, mais experientes, a refletirem sobre o processo e sobre os seus livros. Nesta área, existem bons textos que vão para lá do típico livro de receitas mágicas e dos inevitáveis exercícios. Como em muitas outras áreas, ouvir e ler outros é a melhor forma de confirmar e alargar o que tenho descoberto por mim, depois de brincar, experimentar, atrever-me e ousar. O Miguel afirma que a melhor forma de aprender a escrever é escrever. Escrever de forma sistemática e regular, tal como a melhor forma de ir mais longe na corrida é ter o hábito de correr regularmente. Não posso estar mais de acordo. Como um atleta, um escritor, precisa ginasticar, fortificar e habituar o cérebro à escrita. As primeiras corridas, os primeiros escritos, serão um pouco menos ambiciosos, mas o hábito será a mola para chegar mais longe, para nos viciar, para colocar o cérebro em modo de escrita, para sintonizar os nossos olhos, ouvidos e sentidos na captação de fragmentos, palavras, frases e ideias fundamentais para a escrita.

Quando entro em modo de escrita, passo a viver a dois tempos: escrever e descansar. O segundo tempo, o maior, o descanso, é fundamental para a escrita (ou para qualquer outro processo criativo). É durante o descanso que, como escreve o Miguel, sinto os "estranhos impulsos", que me despertam para determinadas ocorrências, que rapidamente anoto ou gravo; apontamentos esses que são o alimento da escrita, que servem de base às primeiras redações, aos primeiros rascunhos; rascunhos esses que depois de ordenados, cortados, alterados, revistos, emendados e aumentados, nas horas em que escrevo, se transformam num texto ou num livro. As ocorrências são do mais variado tipo: uma frase que ouço (estas são as mais frequentes); algo que leio num livro, num jornal, num reclame de rua; um fragmento de um filme; uma imagem; um gesto; a letra de uma música; algo que surge na minha cabeça vindo do nada. Descobri que não basta escrever, é preciso dar tempo ao cérebro para descansar e captar os estranhos impulsos que levam às ideias, palavras e frases que vou anotando. Os estranhos impulsos, a que alguns chamam inspiração, só ocorrem quando estou em modo de escrita, quando escrevo regularmente e quando dou tempo ao cérebro para captar novos fragmentos. Quando mais activo no escrever, mais ocorrências surgem, mais estranhos impulsos sinto. Não serve de nada forçar a escrita, escrever horas sem fim, esperar que do excesso de esforço nasça algo de jeito. Além disso, procuro escrever o que me vai na alma. De nada me serve tentar imitar, forçar um estilo, tentar ser outro. Cedo percebi que a originalidade deriva tão simplesmente do facto de todos nós termos uma história para contar, uma visão única do mundo. Ninguém mais tem a minha perspectiva. Basta sermos nós mesmos, não imitarmos os outros. Para mim, um hábito de escrita é fundamental, conjugando trabalho focado e efectivo de escrita, com longos momentos sem escrever onde, sem ter consciência, estou a escrever, a construir a ideia, a captar e a armazenar material fundamental. Não me era óbvio, como o não será para muitos que ainda não tenham experimentado: é da repetição do processo, do repetido ensaio, que aparece algo que me espanta; é o hábito de escrita que me sintoniza na frequência certa para captar os fragmentos que preciso para fazer nascer algo que me espante e que possa ecoar e espantar outros. Que bom é ficar espantado; que maravihoso é sentir que faz eco nos outros. Dos cursos de escrita ficou-me uma ideia: escrevemos para ser lidos e os leitores são parte activa no texto, fazem a sua própria versão da história. Não lhes podemos tirar esse direito, não faz falta escrever tudo, todos os detalhes, basta mostrar algo que leve o leitor a descortinar o resto, a criar o resto, a sua própria leitura, a estar activo e interessado. Mostrar é muito mais poderoso que dizer.

Descobri que existem várias formas de prazer no processo de escrita, prazer sentido em vários momentos: quando surge a vontade de escrever algo; enquanto passivamente espero que surja uma ideia; quando sintonizado no processo de escrita, sinto os estranhos impulsos; quando ouço ou vejo algo que me conduz a uma apontamento; na pressa de anotar, para que os fragmentos captados não se percam (o que acontece algumas vezes); no tentar relembrar o que se perde; no encontrar do fio da meada no monte de apontamentos; na conversão dos apontamentos numa primeira redação; no espanto que sinto quando leio o que escrevi; na progressiva construção e reconstrução do texto; na deriva das ideias, levando a que o texto final vá para lá da ideia original; na descoberta de outros sentidos naquilo que escrevi; na forma como tudo acaba por encaixar; na decisão de terminar; na chegada do primeiro exemplar; nas múltiplas leituras e diversas reações de quem me lê. É-me fundamental que a escrita seja livre; que nasça do prazer da descoberta, do deixar fluir, do esperar que os estranhos impulsos me atinjam; do trabalho, sem pressa, no texto. Na escrita, como na vida e noutras artes, vamos tropeçando em sucessivos problemas. A sua resolução é outra fonte de prazer, quando pacientemente espero que as soluções apareçam.

Hoje, senti um dos tais estranhos impulsos ao ler uma entrevista à escritora vietnamita Qué Mai, que publicou recentemente, em Portugal, o livro "Quando as Montanhas Cantam". Tomei um apontamento para não me esquecer. Ela diz que "não sabia o final deste livro" e que "queria ser o tipo de escritora que planeia os finais, mas nunca deu certo". Ela percebeu que é melhor "apreciar o processo de escrita e descobrir o que vai acontecer a seguir", sem planos prévios, deixar "as personagens tomar decisões que mudam o curso da história". Mais outra alucinada que deixa seres imateriais, que só existem na sua cabeça, as ditas personagens, tomarem decisões. Adoro sentir o mesmo.

Uma forma fácil de registar os apontamentos é fundamental. Optei por utilizar o telemóvel para apontar ou gravar os fragmentos que capto ao longo do dia, aqueles que vou a tempo de registar, que não se perdem entre a ocorrência e a falha no registo. O telemóvel tem a vantagem de estar sempre à mão. Falta-me tempo de qualidade para ter o hábito de escrever todos os dias, mas sinto que estou constantemente em modo de escrita quando tenho um texto, uma crónica ou um livro em desenvolvimento. Tento compensar, anotando todos os dias, esteja onde estiver, escrevendo ao fim de semana. Escrevo num computador ou num tablet, num processador de texto, tendo o cuidado de guardar cópias dos textos que vou desenvolvendo. O processador de texto facilita as tarefas de corte e costura, fundamentais para quem, como eu, escreve vários pedaços ao mesmo tempo, que vai arrumando aos poucos, para depois voltar a baralhar e a dar. Existem aplicações para escrita (e.g. bibisco), mas não encontrei, até agora, vantagens. Sinto que são demasiado organizadas para um processo que quero que seja livre e algo caótico, contrário à vida profissional.

Só quase aos cinquenta, descobri esta nova paixão. Foi um mero acaso. Comecei a publicar pequenos textos no Facebook e apercebi-me que as reacções iam para lá do simples "Gosto". Algo ali haveria de bom. Habituei-me a escrever crónicas, pequenos textos sobre o dia-a-dia, sobre tudo e sobre nada, sentimentos transcritos para palavras. Muitos deles sobre as viagens de ida e volta dos meus filhos, dos momentos de encontro e de desencontro, da evolução da vida. Para lá de publicar no Facebook, criei um blog (https://lugar-da-casa.blogspot.com/) para que os textos não se perdessem na poeira do tempo. Pouco depois, senti a necessidade de saber mais sobre a arte da escrita, procurei literatura, alguma teoria e fiz um par de cursos de Escrita Criativa. Em 2016 resolvi tentar a escrita de um primeiro romance. Dessa tentativa, nasceu "Daqui a pouco é amanhã", que imprimi e fui dando de mão em mão. Publiquei o segundo livro, "À minha avó chamavam Jorge", em 2023, na plataforma Bookmundo de auto-publicação. Todos os passos, desde a escrita, passando pela edição, capa e preparação dos ficheiros para publicação, foram feitos por mim. Somente tive suporte profissional pago na revisão do texto, opção que se mostrou determinante para corrigir erros de português, mas principalmente para a coerência final da obra. Os comentários da revisora fizeram-me todo o sentido e levaram-me a repensar e melhorar o texto. Para mim, o mais complexo é a divulgação, o chegar a um público maior que os familiares, os amigos e os conhecidos. Ainda não descobri como.

Estou neste momento a iniciar a escrita dum novo romance do qual ainda sei muito pouco, mas para o qual tenho uma ideia, um título, a frase inicial, o final e uma valente mão cheia de apontamentos e gravações. Parte destas gravações são o registo de conversas com a minha mãe que fará noventa e nove anos no próximo mês de Janeiro. Mesmo estando no início, a ideia original já deu umas quantas voltas e penso que não ficará por aqui. Vamos ver onde irá parar.

Os dois primeiros livros têm em comum o facto de serem textos que nasceram de uma ideia e que cresceram sem que tivesse um plano prévio. No primeiro livro, surgiu-me a ideia de pegar num homem que, nunca tendo fumado, tem uma enorme vontade de fumar um cigarro, que o vai comprar e que, para espanto de todos, fuma como se fosse um hábito de longa data. Sabia que este homem faria uma viagem e que regressaria quando fosse de novo manhã. Tinha escolhido o título ("Daqui a pouco é amanhã"), a primeira frase ("Vou comprar tabaco, já volto") e pouco mais. O segundo livro, nasceu doutra ideia: um homem está preso na sala de embarque de um aeroporto devido a uma tempestade, aguardando um avião que o levará ao funeral da mãe. Tinha a frase inicial ("Há pessoas que estão mortas, mas não estão enterradas"), o título e sabia que o final seria o funeral da mãe. Em ambos os casos, estas poucas sementes bastaram para colocar-me em modo de escrita, para sintonizar as antenas, para que o resto fosse aparecendo. Depois foi um misto de trabalho de escrita e de atenção activa para os fragmentos que foram emergindo do interior, que foram chegando do exterior. Descobri que muito estava cá dentro, sem que tivesse consciência. Fui deixando aparecer as personagens, deixei o seu desenvolvimento entregue a elas próprias e assim, camada a camada, foram-se transformando, ganhando corpo e alma. Para não me perder, fui criando e recriando um cronograma, posicionando os acontecimentos no tempo, procurando a coerência, desenhando um mapa de relações entre personagens. Ao longo do processo, o texto foi sendo organizado e reorganizado em capítulos, muitas vezes repensados, reconstruídos, fragmentados, remisturados, até ao momento final. Em ambos os livros, senti a necessidade de ir editando o texto desde o primeiro momento. Preciso de ter o formato final do texto, não trabalho com um rascunho que depois é editado. Quando escrevo a última letra, o livro já está editado e formatado, muito próximo daquilo que será impresso. Vejo o objecto como um todo, não é só o texto, é a capa, a contracapa, a grafia, a forma do texto, as dedicatórias, os textos que acrescento antes e depois do texto principal. Gosto de cuidar e de tratar de tudo do mesmo modo e ao mesmo tempo. Ambos os livros levaram alguns anos a serem escritos, porque escrevo a pedaços, nos tempos livres, navegando num rio de apontamentos que vai engrossando e na dificuldade inerente à falta de continuidade no processo. No entanto, o longo tempo de escrita e as descontinuidades, têm a vantagem inerente à passagem do tempo, às releituras e revisões feitas com alguma distância, ao acrescentar de camadas e de nuances que doutro modo não apareceriam, ao apagar de outras que o tempo se encarrega de descartar.

A escrita deste artigo, seguiu, em modo condensado, o processo que atrás procurei descrever. Começou na procura da ideia, após ter-me chegado o pedido para o escrever. Nesse momento, entrei em modo de escrita, sedento de encontrar pedaços. Senti, ao longo destes dias, impulsos estranhos, na leitura do livro do Miguel Esteves Cardoso, na entrevista à Qué Mai, na releitura das notas para a entrevista para as Transições, na consulta de reflexões que vou fazendo sobre o processo enquanto escrevo. Com os apontamentos ao meu lado, senti-me em frente do computador, num ambiente calmo e comecei a escrever, traduzindo os apontamentos para um texto, cortando, apagando, reposicionando, acrescentando. Assim, fui escrevendo este artigo, deixando fluir, vendo o evoluir da ideia original. Escrevi numa tarde e revi nos dias seguintes, depois de um merecido e fundamental descanso.

Alexandre Gil
Setembro de 2024